O anúncio da possível cisão da Kraft Heinz, separando suas operações em dois blocos — de um lado molhos e condimentos, como o ketchup Heinz, e do outro alimentos ultraprocessados, como salsichas e queijos — vai além de uma reestruturação empresarial. O movimento reflete uma resposta ao comportamento de consumidores cada vez mais atentos à saúde, à composição dos alimentos e à transparência das marcas. Mais do que uma decisão estratégica, trata-se de um sinal dos tempos: a indústria alimentícia está sendo pressionada a se reinventar diante de uma nova consciência alimentar.
Essa pressão vem tanto de organizações de saúde quanto de um público mais bem informado sobre os impactos do consumo regular de alimentos ultraprocessados, associados a doenças crônicas como obesidade, hipertensão e diabetes. Embora tais produtos ainda predominem nos mercados dos Estados Unidos e Europa, o Brasil também tem vivenciado um processo de transição alimentar e nutricional.
Nas últimas décadas, observou-se um aumento expressivo no consumo de alimentos prontos, processados e de rápida preparação, impulsionado por fatores como a urbanização acelerada, a busca por conveniência, a industrialização das rotinas alimentares e as transformações nos padrões de trabalho. Dados do Inquérito Nacional de Saúde (PNS, 2019) indicam que os alimentos ultraprocessados representam cerca de 19,7% da ingestão calórica diária dos brasileiros, valor ainda inferior ao observado em países como os Estados Unidos, onde esse percentual atinge 57% da dieta, e no Reino Unido, com 50,7% (Zhang, 2021; Rauber, 2016). Em países como França e Itália, os índices são mais baixos, cerca de 14,2% e 13,4%, respectivamente (Monteiro et al., 2018). Esses dados colocam o Brasil em uma posição crítica de transição alimentar: ainda que o consumo seja relativamente menor que o dos países centrais, há uma tendência crescente. Assim, o país encontra-se em um ponto de inflexão, no qual é possível evitar a consolidação de modelos alimentares nocivos e buscar alternativas mais sustentáveis sob os pontos de vista nutricional, social e ambiental.
Nesse cenário, o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, assume protagonismo internacional ao promover uma alimentação baseada em alimentos in natura e minimamente processados, criticando de forma clara o consumo de ultraprocessados. O documento não apenas orienta escolhas alimentares, como também defende uma alimentação adequada, culturalmente significativa e socialmente justa. Ele dialoga diretamente com outras políticas públicas, como a composição da cesta básica nacional.
Em 2023, uma nova legislação incluiu a carne, frutas e verduras como itens obrigatórios da cesta básica brasileira — uma mudança simbólica e política relevante. Historicamente, a cesta foi pensada com base em critérios econômicos, priorizando alimentos energéticos e de baixo custo, o que levou à predominância de itens como arroz, feijão, óleo e açúcar, muitas vezes em detrimento da qualidade nutricional. A inclusão de alimentos frescos representa um passo importante no reconhecimento do papel dos micronutrientes e da diversidade alimentar para a saúde da população.
Entretanto, a implementação dessa lei ainda é desigual entre os estados. A composição da cesta básica varia de acordo com legislações locais e políticas de assistência, o que significa que muitas famílias ainda não têm acesso regular a proteínas de qualidade e alimentos in natura. Além disso, a simples presença desses itens na cesta não garante sua efetividade. É necessário que essa medida venha acompanhada de educação alimentar e políticas de acesso e distribuição, para que não reforce a lógica da alimentação baseada em produtos industrializados de baixo custo.
Por outro lado, há uma clara mudança no comportamento do consumidor. Cresce o interesse por alimentos com menos aditivos, sem corantes e conservantes artificiais, com ingredientes reconhecíveis, como são chamados os produtos de “rótulos limpos” (clean label). Isso não significa, porém, que os ultraprocessados estejam sendo abandonados. Pelo contrário: eles estão sendo repaginados, ganhando versões com apelo saudável, como snacks de vegetais, bebidas vegetais, produtos à base de proteínas alternativas e alimentos funcionais — todos ainda inseridos na lógica industrial, mas com uma nova roupagem.
A cisão da Kraft Heinz ilustra bem essa tendência. Os molhos e condimentos podem ser mais facilmente reformulados para atender às exigências dos consumidores — com menos sódio, mais ingredientes naturais e apelo à saudabilidade. Já os embutidos e pratos prontos enfrentam maior resistência regulatória e de imagem. Separar essas frentes de negócio pode ser uma maneira de reposicionar marcas, segmentar públicos e especializar estratégias, sem comprometer o todo.
O movimento da Kraft Heinz, portanto, não é isolado. Ele representa uma reconfiguração da indústria de alimentos, pressionada a manter sua relevância em um mercado que exige inovação, responsabilidade e saúde. No Brasil, onde o consumo de ultraprocessados ainda está abaixo do nível de países desenvolvidos, temos a oportunidade de fazer escolhas estruturais sobre o modelo alimentar que desejamos fortalecer. E para isso, é fundamental o papel ativo de todos, para garantir que o avanço da indústria esteja alinhado com os princípios da saúde coletiva, da justiça social e da soberania alimentar.
*Karoline Albini Schast é nutricionista, especialista em comportamento e fitoterapia, além de Professora do Bacharelado de Nutrição do Centro Universitário Internacional Uninter.
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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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