Por trás dos números do Censo TEA 2022, divulgado pelo IBGE — que aponta mais de 2,4 milhões de brasileiros com Transtorno do Espectro Autista (TEA) — existe uma realidade negligenciada: o subdiagnóstico em meninas e mulheres. O levantamento, que confirma uma prevalência significativamente maior entre homens, escancara os desafios no reconhecimento do autismo e do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no público feminino.
“O diagnóstico feminino ainda é atravessado por vieses de gênero. As meninas desenvolvem, desde muito cedo, estratégias de camuflagem social para se adaptar, o que mascara os sinais e atrasa a busca por ajuda”, explica Silvia Kelly Bosi, neuropsicopedagoga, cientista e especialista em desenvolvimento infantil e autismo.
Essa habilidade de mascarar comportamentos — conhecida como “masking” — faz com que muitas mulheres passem a vida carregando rótulos equivocados: ansiosas, depressivas, desatentas, sensíveis demais ou até “preguiçosas”. Com isso, o diagnóstico correto chega, na maioria das vezes, apenas na vida adulta — quando chega.
Além do prejuízo emocional, acadêmico e profissional, essa negligência gera consequências severas. “Cada ano sem diagnóstico é um ano sem acesso ao acolhimento, às intervenções certas e sem ferramentas para compreender o próprio funcionamento. Isso não é só um atraso no diagnóstico. É um atraso de vida”, alerta Silvia.
A trajetória da servidora pública Aline Campos, de 45 anos, reflete exatamente essa realidade. Autista, ela só descobriu sua condição depois que seu filho, João, aos 6 anos, começou a apresentar crises na escola. Na busca pelo diagnóstico do filho, Aline encontrou o seu.
“Quando a neuropsicóloga me olhou e disse: ‘Você é autista clássica’, tudo fez sentido. Minha vida inteira, eu achei que tinha algo errado comigo, mas não sabia o quê”, conta Aline, que hoje também é escritora de livros infantis sobre inclusão e neurodiversidade.
Filha de um pai autista (não diagnosticado em vida), Aline cresceu tentando se encaixar, sem saber que seu cérebro apenas funcionava de um jeito diferente. “Sofri bullying, não aprendia matemática, nem conseguia entender relógio de ponteiro. Achava que era burra. Não era falta de inteligência, era discalculia não diagnosticada.”
O diagnóstico não apagou os traumas, mas trouxe alívio, compreensão e potência. Durante o luto pela morte do pai, Aline transformou sua dor em propósito. Escreveu seis livros sobre autismo, sendo quatro já publicados, além de criar cartilhas educativas usadas em programas do governo federal. “Ser autista não me limita. Me explica. Me liberta. Hoje eu posso, finalmente, ser quem eu sou.”
Para Silvia Kelly Bosi, o enfrentamento desse apagamento social e clínico passa por três frentes urgentes:
“A sociedade precisa entender que autismo e TDAH não têm gênero, mas a forma como eles se manifestam, sim. Ignorar essas diferenças é perpetuar o sofrimento silencioso de milhares de mulheres e meninas no Brasil”, conclui Silvia.
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JÚLIA KLAUS BOZZETTO
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