Ayrton Senna, campeão semiótico

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DAMARIS PEDRO
24/04/2025 16h48 - Atualizado há 2 dias

Ayrton Senna, campeão semiótico
Ainda na Lotus, 1985. Primeira entre suas 41 vitórias

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Ayrton Senna, campeão semiótico

Nunca assisti a uma corrida de Fórmula 1. Não inteira. Não prestando atenção. Nem metade de um GP, que significa Grand Prix, e não outra coisa.

Talvez minha maior memória da modalidade seja uma ultrapassagem do então jovem Juan Pablo Montoya para cima do multicampeão Michael Schumacher, em 2001, certamente por acaso em alguma manhã domiciliar.

Mas minha geração, aquela pós-Senna, é traumatizada. Ou melhor, nem isso. Chegou no fim da festa ou mesmo depois dela. Eu sequer havia completado dois anos na morte de Ayrton. Todos os momentos marcantes já haviam acontecido. A catarse em frente à televisão? Ficamos de fora. Não ouvimos o tema da vitória – não com a mesma camada de intensidade. Não participamos do ritual; perdemos algo. Acontece.

Aqueles que aproveitaram a festa sabem exatamente onde estavam em 1º de maio de 1994, quando as luzes se apagaram de vez e uma geração (e/ou nação) inteira foi grosseiramente convidada a se retirar do salão. Empurrado pelo luto nacional, nunca tive o menor interesse pela Fórmula 1.

…e ainda não tenho. Mas arrisco dizer que entendi o fenômeno Senna. O que não é nem de longe um grande mérito. Para quem viveu, aliás, trata-se de uma enorme redundância. Bastava estar lá. Then again, eu não estava, e aqui me resta coletar algumas anotações.

Coletor de epicidade

Somos adeptos do show, don’t tell. Ou somos muito preguiçosos para escrever. O fato é que, se você também não faz(ia) ideia dos momentos marcantes da carreira de Ayrton Senna, pode entender um pouco a partir de qualquer boa compilação do YouTube.

Ou, melhor ainda, assistir a Senna (2010), de Asif Kapadia. É um baita documentário, sem talking heads – uma belíssima narrativa formada na edição, capaz de envolver o mais absoluto indiferente à Fórmula 1.

Acontece que a carreira de Ayrton foi permeada por momentos marcantes, que pareciam trazer um protagonismo cósmico à criatura. Explico tentando ser breve, já arrependido de não ter pedido para o Deepseek fazê-lo:

  • Monaco, 1984: segundo ano na categoria, 24 anos de vida, primeiro pódio. Com a modestíssima Toleman, Senna voou sob chuva torrencial, ultrapassando um rival após o outro e tirando uma eternidade de segundos a cada volta para o líder, Alain Prost. A prova foi encerrada (bem) antes da hora, já formando terreno para categorizar Senna como um injustiçado na modalidade, principalmente porque tanto o vencedor (Prost) como o presidente da Federação Internacional do Esporte Automobilístico (Fisa), Jean-Marie Balestre, eram franceses.
     
  • Portugal, 1985: primeira vitória, já com a Lotus, novamente sob chuva intensa.
     
  • Espanha, 1986: vitória com um carro inferior e apenas 0.014 segundo de vantagem sobre o segundo colocado, o inglês Nigel Mansell, conhecido por seu estilo tão intenso quanto errático (definitivamente alguém que você não gostaria de enxergar pelo retrovisor). Terceira menor distância na linha de chegada da história da Fórmula 1, praticamente imperceptível sem ajuda do replay em câmera lenta. Épico.
     
  • Japão, 1988: primeiro título. Na última corrida do ano, Senna, já na McLaren (com motor Honda), precisava vencer para garantir o campeonato. Após uma largada péssima – largou em 1º, mas saiu em 16º! –, recuperou-se e superou justamente seu colega de equipe, Alain Prost, em Suzuka.
     
  • Japão, 1989: a formação do mito. Na penúltima corrida do ano, Senna e Prost duelavam pelo título, até que ambos colidiram e saíram da pista. Acontece que o abandono dos dois garantia o título a Prost. E um alucinado Senna, com ajuda dos fiscais, retornou à prova, venceu e foi desclassificado horas depois por cortar a chicane. A Fisa, novamente sob influência do francês Balestre, entregou o título a Prost. Senna considerou a decisão política, não esportiva, e esse momento (1) gera debates até hoje, o que por si só reforça quão marcante foi aquela época da Fórmula 1; (2) reforçou a imagem de Senna como um injustiçado lutando contra aqueles malditos europeus – tanto para si como para os brasileiros. O que não pode ser subestimado aqui é justamente a bomba semiótica de Senna fazendo questão de voltar e pilotar para a vitória a todo custo, enquanto o frio francês se retirava com indiferença. É o tipo de coisa que compõe um ícone, principalmente porque a atitude de Senna ao voltar à pista seria desconsiderada infração já no ano seguinte, fortalecendo seu discurso de perseguição (real ou não).
     
  • Japão, 1990: vingança calculada. Um ano depois, a explosão definitiva da rivalidade. Senna liderava o campeonato, mas a pole position foi decidida no lado sujo da pista, favorecendo Prost. Na largada, o brasileiro manteve a liderança e, na primeira curva, acelerou sem hesitar quando o francês tentou fechá-lo. A colisão foi inevitável – os dois bateram e abandonaram. Senna sagrou-se campeão, mas foi tremendamente irresponsável e antidesportivo ao fazê-lo. Porém, o fez com convicção, nem aí. Como o gol de mão de Maradona (mais sobre isso logo abaixo). E, novamente, sustentando o discurso de perseguição, luta contra o sistema etc., uma vez que havia alertado para o fato de que, a despeito de largar em primeiro, sairia no lado ruim da pista. “Se ele sair na minha frente depois da curva, já era”. E foi.
     
  • Brasil, 1991: outro momento de protagonismo cósmico. Senna nunca havia vencido no Brasil, até que liderava em Interlagos. Porém, o câmbio do carro ficou travado na sexta marcha nas últimas voltas, o que exigiu dele um esforço físico extraordinário para segurar o veículo e evitar ultrapassagens. Ao cruzar a linha, urros de dor e alívio. Depois do pódio, outra bomba semiótica: aos prantos, Ayrton mal conseguia segurar o troféu. Then again, essas peculiaridades formam os ícones. Ter o Galvão Bueno no ápice como amigo pessoal não atrapalha.
     
  • Bélgica, 1992: Senna desceu do próprio carro para socorrer o piloto Erick Comas, já desacordado no cockpit – pior, ainda com o pé no acelerador. O brasileiro desligou a ignição do veículo, evitando o risco de o carro pegar fogo [e arriscando o próprio c* ao fazê-lo]. Também segurou a cabeça do francês até o atendimento médico chegar. Comas não mede palavras ao creditar a Ayrton sua salvação.
     
  • Europa, 1993: em Donington Park, rodeado de ingleses que nunca aprenderam a pronunciar “a-IR-ton”, sob chuva, Senna largou em quarto e, ainda na primeira volta, ultrapassou os ferozes Michael Schumacher, Karl Wendlinger, Damon Hill e Alain Prost, assumindo uma liderança que não abandonaria. Muitos consideram aquela a melhor volta da história da Fórmula 1. E aí ele segurou o Sonic.
     
  • Brasil, 1993: a última grande alegria. Com um carro problemático da McLaren-Ford, travou uma batalha estratégica contra [principalmente] Damon Hill. No final, com o tanque quase vazio e o motor perdendo potência, cruzou a linha de chegada em primeiro. Mais uma bomba semiótica: quando saiu do carro, foi recebido por uma onda de fãs que invadiram a pista, carregando-o nos braços. Pura brasilidade. Foi sua segunda e última vitória por aqui.
     

Nosso Maradona

A empolgação com o tema me levou a ler a nova edição de Ayrton: o herói revelado, de Ernesto Rodrigues. Um livro estupendo. Por meio dele, conseguimos entender um pouco mais do apelo dessa figura sagrada para a mitologia brasileira. Também me levou a comprar um boné pela primeira vez na vida.

Famoso pelos momentos de silêncio que antecediam respostas, Senna emanava uma curiosa melancolia. Era diferente dos pilotos de sua época, o que não à toa lhe rendeu o maldoso boato – empurrado por Nelson Piquet, tricampeão mundial e chofer do Bolsonaro – de que era, vejam só… gay.

Também era um obcecado. Foi um gênio técnico da Fórmula 1 porque dominava o carro com uma precisão sobrenatural. Sua capacidade de ler as condições da pista, especialmente sob chuva, era fora de série, bem como o esforço e a competência para relacionar os dados do veículo com a pista, otimizando cada trecho.

Mas a parte técnica me interessa muito menos, até porque não tenho a menor condição de avaliá-la. Me interessa mais entender de que forma sua personalidade misturava competitividade feroz e uma sensibilidade quase poética. Um sangue latino.

Óbvio, morrer jovem e tragicamente promove qualquer personalidade. A morte de Bruce Lee compõe a imagem de Bruce Lee, o que também vale para Marilyn Monroe e, claro, toda aquela lista de músicos. Mas um esportista em ação, um ídolo nacional… para quem não viveu, é difícil imaginar.

Exaltado e promovido pela mídia? Sem dúvida. Mas isso só se sustenta ao longo do tempo quando alicerçado por substância. E Senna, como vim a descobrir, tinha muita. Sabia falar, mas, principalmente, sabia como e com quem falar. Ajustava seus discursos porque era acima de tudo um sujeito demasiado inteligente.

Sua entrevista com o também tricampeão Jackie Stewart – Sir Jackie Stewart – sintetiza esse atributo. Senna se defende diante de uma lenda, abraça seu ponto de vista, argumenta e não abre mão de sua convicção. Fora de sua língua nativa, o que não é um detalhe irrelevante. E ainda profere uma das frases mais famosas da história da Fórmula 1: “If you no longer go for a gap that exists, you're no longer a racing driver”.3

Essa convicção – a capacidade de envolver-se completamente e não arregar, principalmente diante deles, os colonizadores europeus [outro detalhe nada irrelevante] – é um dos vários elementos que transformam Ayrton Senna no nosso Maradona. Não é uma coincidência que o argentino adorava o brasileiro. Aliás, é muito comum encontrar, no YouTube, comentários na linha “soy argentino, pero Senna…”.

O fato é que Ayrton Senna estava no famoso lugar certo, na hora certa e capturando o zeitgeist certo em um esporte em que pessoas se divertem (e morrem ou morriam) a 300 km/h. Parece difícil que novos pilotos – ou atletas em geral – consigam construir tamanha aura, afinal também falamos de um tempo menos cronometrado. Hoje não há grande misticismo, uma vez que acompanhamos tudo, o tempo todo, em excesso. Com RP infinito. Havia ali um sinal de piloto à frente do tempo, algo complicado de mensurar com as margens menores de genialidade em uma modalidade já superestruturada.

Depois da morte de Senna – e do austríaco Roland Ratzenberger, na mesma maldita pista, no mesmo maldito fim de semana –, a própria Fórmula 1 ficou mais segura. E talvez tenha se encerrado de vez a era dos aventureiros que exploravam o limite da velocidade sob um risco genuíno, ainda não completamente decifrado.

No próximo 1º de maio, também sentirei um vazio estranho, mesmo sem ter presenciado nada, sem saber diferenciar um Verstappen de um Vettel ou assistir mais que o tempo de um pit stop. Ayrton não conseguiu apenas imortalizar Senna. Num país de autoestima inexplicavelmente baixa, conseguiu fazê-lo mantendo-se, acima de tudo, Ayrton Senna da Silva. Um brasileiro capaz de unir brasileiros protagoniza o verdadeiro milagre e merece, portanto, as maiores honrarias.

Toca o Tema da Vitória, p**ra!

 

BAÚ

Ursula Le Guin

O som do idioma é onde tudo começa. O teste de uma frase é: “Soa bem?”. Os elementos básicos da linguagem são físicos: o barulho que as palavras fazem, os sons e silêncios que criam os ristmos marcando as relações entre elas. Tanto o significado como a beleza da escrita dependem desses sons e ritmos. Isso é tão verdadeiro para a prosa como para a poesia, embora os efeitos sonoros da prosa sejam geralmente sutis e sempre irregulares.

A maioria das crianças gosta do som do idioma em si. Elas rolam em repetições e deliciosos sons-apalavras e na crocante e serpentina onomatopeia; apaixonam-se por palavras musicais ou impressionantes e usam-nas em todos os lugares errados. Alguns escritores mantêm esse interesse primordial e esse amor pelos sons do idioma. Outros “superam” seu senso oral/auditivo no que estão lendo ou escrevendo. Essa é uma perda total. Perceber como sua própria escrita soa é uma habilidade essencial para quem escreve. Felizmente, ela é bastante fácil de cultivar, aprender ou reavivar.

Ursula K. Le Guin, Como criar histórias, 1998. Ed. Seiva, 2024.

 

NOTAS

1. As especulações sobre quem Senna seria se estivesse vivo (que, em suma, resumem-se a “em quem ele votaria?”) podem ser divertidas para uma conversa despretensiosa entre amigos, mas me parecem um desperdício de imaginação quando levadas a sério.

2. Creio que o mais próximo disso que minha geração testemunhou foi o acidente da Chapecoense. Também no futebol, outro detalhe: o promissor Dener havia morrido menos de duas semanas antes de Senna.

3. Algo como “Se você não tenta se colocar em um espaço que existe, então você não é mais um piloto”.

 

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Damaris Pedro
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FONTE: Daniel Zanella
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