Do número à notícia: como ONGs podem transformar dados em narrativas?

VANDERLEI TENóRIO
10/09/2025 14h51 - Atualizado há 3 horas

Do número à notícia: como ONGs podem transformar dados em narrativas?
Reprodução/CEPHO

Usar dados é uma das formas mais eficazes para dar visibilidade às organizações sociais. Números conferem credibilidade e aumentam as chances de uma pauta ser escolhida por jornalistas, que precisam sempre contextualizar a ação local de uma ONG dentro de uma realidade social mais ampla. Um projeto que atendeu vinte pessoas pode parecer pequeno, mas, se esse número for comparado com a taxa de abandono escolar de um bairro, ou com índices nacionais de analfabetismo, ele se torna muito mais relevante.

O dado, portanto, funciona como um gancho que transforma histórias em notícias.

É importante lembrar que, mesmo na era das redes sociais e dos influenciadores, a imprensa continua a ter um papel central. Grande parte das informações que circulam no espaço digital ainda nasce em reportagens. A imprensa não apenas legitima e amplia a voz das ONGs, como também é um pilar da democracia, responsável por dar visibilidade tanto a boas práticas quanto a denúncias necessárias.

Para dialogar com esse campo, é essencial compreender a lógica jornalística. Um texto noticioso geralmente começa pelo lead, que concentra as informações mais relevantes — quem, quando, onde, como e por quê. No segundo parágrafo, aparecem os dados que contextualizam o tema, seguidos de exemplos concretos, como a história de uma pessoa atendida. Por fim, vem a conclusão, que reforça impacto ou necessidade. Ao elaborar releases, as ONGs podem imitar esse formato, facilitando o trabalho do repórter.

Os números utilizados podem vir tanto da própria organização (quantidade de atendidos, perfil do público, resultados alcançados), quanto de fontes públicas. Entre elas, destacam-se o IBGE, o Atlas da Violência, o DataSUS, o INESC, a Oxfam e observatórios sociais. É importante buscar sempre dados atualizados e, sempre que possível, recortes locais ou regionais, que dialoguem com a realidade onde a ONG atua.

Transformar números em narrativas atraentes requer algumas estratégias simples. Usar proporções — “de cada dez jovens atendidos, sete conseguiram emprego” — torna o dado mais concreto. Comparar com a média nacional dá dimensão ao impacto: “Enquanto no Brasil 18% dos jovens abandonam a escola, no bairro X nossa ONG reduziu esse número para 5%”. Contrastar dados ajuda a evidenciar desigualdades, como na comparação entre salários de homens e mulheres. E números redondos, como “dez anos de atuação” ou “mil atendimentos”, costumam chamar a atenção da imprensa. Recursos visuais, como tabelas e infográficos, podem complementar o release e facilitar a compreensão.

Alguns exemplos mostram como isso funciona na prática. Uma ONG que oferece cursos de costura para mães solo ganhou força ao contextualizar que 63% dessas mulheres, no Brasil, são negras — e que 80% de suas alunas também o eram. Outro caso foi o dos jumentos: ao traduzir o declínio da população animal em percentuais e proporções — “94% de queda; hoje restam apenas seis a cada cem jumentos dos anos 90” —, a pauta repercutiu em mais de 800 matérias publicadas. De forma semelhante, alfabetizar oitenta adultos em um bairro onde 18% da população é analfabeta se torna uma conquista com impacto coletivo.

Ao usar dados, é preciso ter cuidado para não reforçar estigmas. Muitos números tratam de temas sensíveis, como racismo, violência ou desigualdade. Nesses casos, é fundamental não apenas repetir tragédias, mas também destacar soluções e impactos positivos. A linguagem deve ser inclusiva, valorizando conquistas e superações. Em vez de dizer apenas “jovens negros sofrem mais violência policial”, por exemplo, pode-se enfatizar que “jovens negros do projeto X conseguiram acesso à universidade”.

Para encontrar bons dados, é possível usar ferramentas como o Google Dataset Search, relatórios de institutos oficiais e releases de outras organizações. Ler o que já foi publicado por ONGs semelhantes também ajuda a compreender formatos e estratégias bem-sucedidas. O exercício prático é simples: escolha um projeto da sua ONG, levante um dado interno, conecte-o a um dado público e transforme essa combinação em uma frase de impacto. “Nos últimos 12 meses, capacitamos 120 catadores em Salvador, o que representa 10% de todos os catadores da cidade” é um bom exemplo.

Ao construir um release, é útil seguir um pequeno checklist: qual é o impacto em números? Qual dado público conecta esse impacto a um problema maior? É possível transformar isso em proporção ou comparação? A frase de impacto funciona como manchete? Há exemplos concretos que ilustrem a estatística? Um modelo básico de release poderia ser estruturado assim: título chamativo com dado (“ONG reduz evasão escolar em 70% no bairro X, onde 1 em cada 5 jovens abandona os estudos”), lead com resumo do impacto, desenvolvimento com números internos da ONG, contextualização com dados nacionais e um exemplo concreto, como a história de uma jovem atendida e, por fim, uma conclusão que aponte para os próximos passos da organização. Esse tipo de estrutura conversa diretamente com a lógica jornalística e aumenta muito as chances de publicação.

O dado, nesse contexto, não é um fim em si mesmo, mas um gancho narrativo. Ele abre portas para que histórias individuais ganhem projeção coletiva. Um número frio, quando humanizado por uma trajetória de vida, deixa de ser estatística e passa a ser notícia. É assim que uma conquista pontual — uma mãe solo que se formou, um jovem que conseguiu emprego, uma criança que aprendeu a ler — ganha relevância nacional quando aparece ao lado de um indicador amplo que mostra o tamanho do problema que a ONG ajuda a enfrentar.

Outro ponto a considerar é a forma de apresentação. Releases podem ganhar clareza com recursos simples: tabelas no Word, gráficos básicos em planilhas ou mesmo comparações diretas em frases curtas. Ao traduzir 20% em “2 a cada 10 jovens”, ou 94% em “apenas 6 em cada 100 sobrevivem”, a ONG facilita a leitura e reforça o impacto.

Mas os dados, por si só, não bastam. É preciso usá-los com responsabilidade e sensibilidade. Temas como violência, pobreza ou racismo não devem ser reduzidos a números secos. Cabe às organizações equilibrar denúncia e esperança, trazendo à tona não apenas o tamanho da desigualdade, mas também as soluções que estão sendo construídas. Essa é uma oportunidade de reposicionar narrativas e mostrar que, apesar dos desafios, existem caminhos concretos de transformação social.

Em última instância, usar dados é uma forma de dar voz às comunidades. Cada indicador representa vidas que não devem ser invisíveis. Quando uma ONG consegue articular números e histórias, ela não apenas fortalece sua presença na mídia, mas também contribui para uma comunicação mais justa, inclusiva e democrática.

Assim, o recado é claro: quem trabalha no terceiro setor precisa aprender a contar suas histórias em linguagem jornalística. Dados dão o primeiro passo; exemplos humanos, o segundo; e a combinação dos dois é o que abre espaço na imprensa. É nesse ponto de encontro entre estatística e narrativa que as ONGs conseguem transformar relatórios em manchetes, e projetos locais em exemplos de alcance nacional.


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VANDERLEI TENÓRIO PEREIRA JUNIOR
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