Judicialização da saúde: quando o direito ignora a técnica

KAMILA GARCIA
03/09/2025 15h18 - Atualizado há 1 dia

Judicialização da saúde: quando o direito ignora a técnica
Pixabay
 

A judicialização da saúde é uma realidade tanto no âmbito público quanto no privado, impactando diretamente a estrutura do sistema e a segurança jurídica. Atualmente, ela afeta diversos direitos e serviços, como a disponibilização de medicamentos, exames, internações, cirurgias, além das questões contratuais recorrentes, como rescisão, inadimplência e carência. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que, desde 2020, o número de ações distribuídas mensalmente sobre saúde suplementar triplicou, alcançando quase 30 mil por mês — volume que desafia os limites contratuais previamente estipulados e aprovados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Esse protagonismo judicial tem gerado a ampliação da cobertura por decisão judicial, frequentemente à revelia do regramento jurídico, regulatório e técnico. Ao conceder coberturas não previstas pela legislação ou pelas normas da ANS, o Judiciário ultrapassa seu papel e contribui para um cenário de ativismo judicial. Isso desestrutura o sistema de saúde suplementar, eleva os custos dos planos — com impactos diretos nos reajustes — e compromete a previsibilidade contratual, essencial para o equilíbrio atuarial e financeiro das operadoras.

A relativização da autoridade técnica da ANS e de outros órgãos especializados é recorrente nas decisões judiciais. Juízes, em sua maioria sem formação na área da saúde, frequentemente não se valem de instrumentos disponíveis para uma análise especializada. Dados da FENASAÚDE revelam que, em segunda instância, apenas 3 de 599 decisões mencionam perícia judicial; em 9, há recomendação de que ocorra; e nenhuma delas utiliza parecer do Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), principal fonte de informação técnica independente. Isso reforça a ausência de critérios técnicos objetivos e enfraquece a regulação do setor.

A Lei 14.454/2022, que alterou a Lei 9.656/98, reafirma que o rol da ANS é exemplificativo, mas estabelece critérios para que procedimentos fora do rol sejam cobertos — exigindo, entre outros, a medicina baseada em evidências. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 1234, também sinalizou a necessidade de fundamentação técnica, mesmo em pedidos no âmbito do SUS. Embora aplicado ao setor público, o precedente reforça que não basta a prescrição médica: perícias, pareceres técnicos e manifestações de órgãos como ANS, ANVISA e CONITEC são indispensáveis.

Apesar da sensibilidade do tema, uma vez que envolve o paciente no centro da discussão, é imprescindível respeitar a legalidade e os contratos para preservar a assistência médica coletiva. Decisões que determinam o custeio de tratamentos sem eficácia comprovada e sem respaldo técnico geram risco ao beneficiário, provocam desperdício de recursos finitos e oneram o sistema de maneira desproporcional. Estima-se que as operadoras tenham desembolsado R$ 5,5 bilhões com despesas judiciais em 2023 — um aumento de 37,6% em relação a 2022. Nos últimos cinco anos, os custos ultrapassaram R$ 17 bilhões.

A judicialização sem embasamento técnico aprofunda desigualdades no acesso aos serviços de saúde suplementar. Beneficiários que obtêm coberturas ampliadas judicialmente muitas vezes não contribuem com valores proporcionais ao benefício, utilizando o fundo mútuo em prejuízo dos demais usuários. Esses custos assistenciais adicionais, determinados por decisões desconectadas da regulação, dificultam o acesso da população aos planos de saúde e pressionam o Sistema Único de Saúde (SUS), provocando efeitos colaterais em toda a estrutura assistencial do país.

Conclui-se, assim, que o enfrentamento da judicialização da saúde suplementar exige o fortalecimento da regulação técnica e contratual e o compromisso do Judiciário com decisões baseadas em evidência científica. A sustentabilidade do modelo assistencial e o acesso equitativo à saúde dependem da atuação harmônica entre os poderes, com respeito às competências institucionais e à legislação vigente.


 

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KAMILA BATISTA GARCIA
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