Por quase três décadas, as relações internacionais foram narradas sob o feitiço de uma visão otimista. No rastro da queda do Muro de Berlim, o sentimento dominante, era de que a democracia liberal e a economia de mercado haviam vencido. G. John Ikenberry, um dos principais teóricos desse pensamento, argumentava que a ordem internacional construída pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, baseada em instituições multilaterais, mercados abertos e uma comunidade de democracias cooperantes, era tão funcional que seria fácil de aderir e difícil de derrubar. A promessa era a de que o poder americano, embora dominante, se deixaria moderar por regras comuns, e que novas potências, como a China, seriam “socializadas” dentro desse arranjo, adotando suas normas em troca dos benefícios da integração.
Hoje, essa promessa parece ter sido superada. Não por uma ruptura dramática, mas por um lento deslocamento de ênfase. A retórica liberal ainda aparece em discursos e documentos, mas sua capacidade de produzir coordenação global perdeu fôlego. O que se consolida é uma ordem pós-liberal, não exatamente contrária à anterior, mas organizada a partir de prioridades distintas. A soberania ganha precedência, a cooperação torna-se condicional, e o universalismo liberal perde centralidade.
A teoria realista oferece uma leitura mais compatível com esse tempo. Em especial, os alertas de William C. Wohlforth sobre a instabilidade de sistemas multipolares ajudam a compreender o presente. Na multipolaridade, não há garantias de previsibilidade. As grandes potências operam com desconfiança mútua, a cooperação se torna episódica e a política de alianças é marcada por revisões constantes. O dilema de segurança se intensifica, e a política externa volta a se organizar a partir de percepções de ameaça, não de oportunidades coletivas.
Os sinais desse ambiente estão por toda parte. A guerra na Ucrânia avança para seu quarto ano sem solução ou mediação eficaz. No Oriente Médio, a escalada entre Israel e Irã estabelece um novo patamar de risco regional, enquanto a crise humanitária em Gaza desgasta alianças históricas. Governos que antes sustentavam a retórica dos direitos humanos hoje se limitam a emitir alertas sem consequência prática, enquanto conflitos brutais, como o do Sudão, se desenrolam na indiferença global. Essa paralisia da ação coletiva é uma manifestação direta do dilema de segurança multipolar previsto por Wohlforth, onde a desconfiança mútua impede qualquer iniciativa que possa beneficiar um rival.
Essa nova lógica de paralisia se estende à arquitetura institucional que deveria sustentar a ordem. A Organização Mundial do Comércio, pilar da globalização, tem seu mecanismo de resolução de disputas neutralizado há anos. O Conselho de Segurança, por sua vez, consolidou-se como um palco para vetos que apenas ratificam o impasse geopolítico, em vez de resolvê-lo. Com isso, o sistema ONU como um todo recua para um papel de inspiração normativa: uma voz presente em resoluções e discursos, mas cada vez mais ausente na capacidade de coordenar respostas concretas.
A dinâmica entre potências também se reorganiza. Brasil, Índia, Turquia, África do Sul e os países que ingressaram recentemente nos BRICS procuram traçar caminhos que não estejam subordinados a centros tradicionais de poder. Buscam ampliar sua margem de manobra sem alinhar-se automaticamente a Washington ou Pequim. Tornam-se alvos recorrentes de críticas por parte daqueles que ainda operam sob a estrutura da subordinação e dependência.
Nesse ambiente, a função do discurso liberal se altera, e o que era um conjunto de princípios universais transforma-se em um repertório de justificativas, aplicado de forma seletiva. A defesa dos direitos humanos torna-se pontual, evocada com veemência em certos contextos e convenientemente silenciada em outros. Em contrapartida, a soberania, que a ordem liberal buscava modular, recupera sua centralidade como argumento final, inclusive para os próprios arquitetos do sistema. O resultado é uma notável convergência retórica, na qual o vocabulário antes reservado à crítica de autoritarismos é utilizado por democracias para legitimar suas próprias decisões unilaterais, minando sua autoridade moral.
A ordem pós-liberal não é marcada por rupturas espetaculares, mas pela normalização da indiferença. A fragmentação do poder dissolve critérios de universalidade, e cada ator molda sua atuação com base em interesses internos e urgências momentâneas. A cooperação sobrevive, as instituições continuam existindo, mas sem amarras de longo prazo. Os valores ainda são citados, mas raramente orientam as decisões que realmente importam.
Por muito tempo, acreditamos estar construindo uma comunidade internacional baseada em regras, valores e convergência, onde existiria uma hegemonia estável e de lideranças dispostas a se autolimitar. Esse cenário não existe mais. E agora, no silêncio das instituições e na cautela das potências, parece que a história retomou o caminho da instabilidade de sempre.
* Guilherme Frizzera é Doutor em Relações Internacionais e coordenador do curso de Relações Internacionais da Uninter.
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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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