Remédios emagrecedores: manipulado não é falsificado

Ao tratar de temas que envolvem saúde pública, é preciso rigor, equilíbrio e o compromisso com a verdade

FERREIRA ANTUNES
27/05/2025 15h45 - Atualizado há 1 dia

Remédios emagrecedores: manipulado não é falsificado
Divulgação

Claudia de Lucca Mano*

No último dia 26 de maio, uma matéria veiculada no Jornal Nacional sobre medicamentos emagrecedores do tipo GLP-1, como tirzepatida e semaglutida, suscitou uma perigosa confusão: a de que produtos manipulados em farmácias seriam equivalentes a produtos falsificados. A reportagem ouviu apenas especialistas ligados à indústria farmacêutica e sugeriu que a manipulação desses medicamentos favoreceria o comércio ilegal de canetas falsificadas. Trata-se de uma inferência equivocada — e grave.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que a manipulação de medicamentos não é sinônimo de falsificação. Falsificação é crime. Manipulação é prática farmacêutica regulamentada por lei. Confundir as duas coisas — ou induzir o público a essa confusão — compromete o debate público e reforça a narrativa de um setor econômico interessado em eliminar a concorrência.

Diferentemente do que foi sugerido, a existência de patentes sobre moléculas como a semaglutida e a tirzepatida não impede a manipulação individualizada desses princípios ativos, conforme previsto no artigo 43, inciso III, da Lei de Propriedade Industrial (nº 9.279/96). A norma é clara: a proteção patentária não se aplica ao preparo de medicamento sob encomenda, em doses individualizadas, feito por profissional habilitado para atender a prescrição de um profissional de saúde.

As farmácias de manipulação seguem, para aquisição e uso de insumos, rigorosos procedimentos de controle de qualidade. Os princípios ativos, geralmente importados, chegam ao país acompanhados de laudos emitidos pelos fabricantes. Os distribuidores refazem todos os testes laboratoriais — incluindo análises de identidade, pureza, microbiologia e conformidade com padrões físico-químicos — antes de repassar o insumo às farmácias. Esse mesmo caminho é percorrido pela indústria farmacêutica. Nenhuma das duas, vale lembrar, conta com análises diretas feitas pela Anvisa. O papel da agência é fiscalizador e regulador, não de reprodutor de testes laboratoriais de cada lote.

Também não se sustenta o argumento de que a manipulação desses ativos seja uma infração sanitária. A Anvisa já esclareceu publicamente que não é infração manipular medicamentos como tirzepatida e semaglutida, desde que os insumos utilizados sejam equivalentes aos constantes nos medicamentos industrializados registrados — como Ozempic, Wegovy ou Mounjaro — e que haja prescrição médica. Essa é uma prática legal e amplamente difundida, inclusive recomendada em contextos onde a dosagem precisa ser ajustada às necessidades individuais do paciente. O custo acessível também pesa na decisão do consumidor pela manipulação.

Confundir essa prática legal com o crime de venda de canetas injetoras falsificadas é uma temeridade. Produtos como os vendidos ilegalmente por influenciadores nas redes sociais são, de fato, um risco à saúde pública. Mas é preciso deixar claro: esses produtos não vêm de farmácias de manipulação. Essas farmácias não comercializam canetas prontas, e sim ampolas ou frascos-ampola, para uso com seringas sob prescrição. A venda direta ao consumidor de medicamentos sem prescrição ou de origem clandestina é crime — e esse crime não pode ser atribuído, nem por aproximação, a estabelecimentos legalizados e regulamentados.

A indústria farmacêutica, naturalmente, tem interesse em manter o monopólio sobre medicamentos de alto custo e forte demanda, e tem todo direito de defender suas patentes contra exploração indevida. No entanto, a imprensa não pode atuar como porta-voz exclusiva de um lado dessa equação. Ao tratar de temas que envolvem saúde pública, é preciso rigor, equilíbrio e o compromisso com a verdade. Os milhões de brasileiros que recorrem a medicamentos manipulados — seja por necessidade clínica, seja por inviabilidade financeira de comprar os produtos industrializados — merecem uma cobertura que os respeite, e não que os desinforme.

*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos

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