Rotina com propósito: como o cotidiano familiar molda o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança atípica

JúLIA BOZZETTO
11/08/2025 18h46 - Atualizado há 5 horas

Rotina com propósito: como o cotidiano familiar molda o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança
Raphael Barros
 

*Silvia Kelly Bosi

Muito se fala sobre a importância das terapias especializadas para crianças com transtornos do neurodesenvolvimento, como o autismo, o TDAH e o atraso global do desenvolvimento. No entanto, na prática clínica e na convivência com inúmeras famílias, vejo que um dos fatores mais determinantes para o avanço real dessas crianças é a forma como a rotina familiar é organizada e vivida no dia a dia. A rotina não é apenas uma sequência de atividades; ela é estrutura, previsibilidade, afeto em forma de organização. É no cotidiano — e não apenas na clínica — que a criança aprende, regula suas emoções e desenvolve suas habilidades cognitivas e sociais. Quando essa rotina é pensada com intenção, constância e vínculo, os resultados são surpreendentes.

Crianças atípicas precisam de segurança para se desenvolver. E essa segurança vem, muitas vezes, da previsibilidade: saber o que vai acontecer, qual o próximo passo, quem estará por perto. Estudos recentes apontam que rotinas familiares estruturadas estão associadas a menor estresse emocional, melhor regulação comportamental e avanços expressivos na comunicação, especialmente em crianças com autismo. Uma pesquisa publicada no Journal of Family Theory & Review reforça que crianças que vivem em lares com rotinas previsíveis têm menos episódios de ansiedade e maior estabilidade emocional. Quando aplicadas com carinho e envolvimento, essas rotinas se transformam em potentes ferramentas de estímulo.

Mas é importante ressaltar que não estou falando de rigidez. Uma rotina eficaz não é militar; ela é acolhedora. Ela organiza, mas também se adapta. Ela dá segurança sem sufocar a espontaneidade. É nesse equilíbrio que vejo as crianças florescerem. Pais que participam da criação dessa rotina, que se engajam nos momentos de cuidado, lazer e até nas atividades terapêuticas, oferecem algo que nenhuma intervenção externa pode substituir: presença significativa. O que se aprende na clínica precisa ser vivido em casa, nos pequenos gestos, nas palavras repetidas com paciência, no reforço positivo diante de uma tentativa de comunicação ou de uma conquista simples como segurar o garfo sozinho.

Quando a família está alinhada, a criança sente. Ela se sente pertencente, compreendida e capaz. E isso impacta diretamente seu desenvolvimento cognitivo e emocional. O cérebro da criança neurodivergente, assim como o de qualquer outra, é moldado pelas experiências vividas diariamente. E as experiências mais importantes são, sem dúvida, as que acontecem dentro de casa. É no colo, na escuta, no repetir a mesma história dez vezes, no ajudar a escovar os dentes todos os dias, que os circuitos neurais se fortalecem e as conexões emocionais se ampliam.

Rotina é mais do que um conjunto de horários — é uma linguagem de cuidado. E quando construída com propósito, ela se torna um verdadeiro motor de desenvolvimento. Costumo dizer que não há intervenção mais poderosa do que uma família presente, afetuosa e comprometida com o processo de crescimento da sua criança. E essa presença começa pelo simples: acordar juntos, brincar juntos, jantar à mesa, manter rituais que dão sentido e acolhimento à infância. É aí que a mágica acontece.

Como especialista, mas também como mãe atípica, afirmo com convicção: rotina estruturada, quando feita com amor e constância, é uma das mais eficazes formas de estimular o desenvolvimento infantil. Ela não substitui as terapias, mas potencializa todos os seus efeitos. É a ponte entre a técnica e o afeto, entre a ciência e o vínculo. É onde a criança atípica encontra seu chão para crescer — e a família, sua força para seguir.

*Silvia Kelly Bosi é neuropsicopedagoga, cientista da educação, especialista em desenvolvimento infantil e autismo, palestrante e CEO da Potência – Clínica de Desenvolvimento Infantil. Também é mãe atípica e defensora da inclusão como caminho para uma sociedade mais justa e inteligente.

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JÚLIA KLAUS BOZZETTO
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