Ana Maria Gonçalves na ABL: um marco que ressignifica a literatura brasileira

Maristela Gripp (*)

JULIA ESTEVAM
28/07/2025 11h57 - Atualizado há 13 horas

Ana Maria Gonçalves na ABL: um marco que ressignifica a literatura brasileira
Rodrigo Leal

A literatura brasileira acaba de ganhar um novo capítulo histórico. No dia 10 de julho de 2025, Ana Maria Gonçalves tornou-se a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, conquistando um espaço que por mais de um século permaneceu fechado às vozes que ela representa. Mais do que um reconhecimento individual, sua eleição simboliza a abertura de caminhos para narrativas que foram sistematicamente silenciadas em nossa tradição literária.

Nascida em 1970, em Minas Gerais, Ana Maria Gonçalves trilhou um percurso único até chegar à literatura. Após trabalhar como publicitária em São Paulo, tomou uma decisão corajosa em 2002: mudou-se para Itaparica, na Bahia, para se dedicar integralmente à escrita. Ali, mergulhou nas histórias e memórias que dariam vida à sua obra mais emblemática.

Seu primeiro livro, Ao lado e à margem do que sentes por mim (2002), publicado de forma independente, já demonstrava seu talento, recebendo boa acolhida da crítica, apesar da tiragem reduzida. Mas foi com Um defeito de cor (2006) que Ana Maria se estabeleceu definitivamente no cenário literário nacional, após cinco anos de trabalho intenso: dois dedicados à pesquisa, um à redação e dois à reescrita. 

Um defeito de cor não é apenas um romance; é um projeto literário de dimensões épicas. Com quase mil páginas, a obra narra a saga de Kehinde, personagem inspirada na figura histórica de Luísa Mahin. A protagonista nasce em Savalu, no Reino do Daomé (atual Benin), é capturada aos oito anos e trazida como escrava para a Ilha de Itaparica.

A narrativa, conduzida em primeira pessoa, inicia-se com Kehinde já idosa, retornando à África em busca do filho perdido — fruto de uma relação com um português que entregou a criança a terceiros. Durante essa travessia, a protagonista rememora sua trajetória: a infância africana, a captura brutal, a travessia transatlântica e os horrores da escravidão no Brasil, incluindo o levante dos Malês. Após conquistar a alforria, Kehinde reconstrói sua vida como mulher livre, estabelece um negócio próspero e decide emigrar para a África junto com outros ex-escravizados.

O romance se destaca pelo rigor documental com que Ana Maria reconstruiu o período histórico. A autora consultou documentos reais e fontes primárias da Bahia e da África colonial, criando um universo narrativo que mescla ficção e história de forma magistral. Esse cuidado metodológico rendeu-lhe o Prêmio Casa de las Américas em 2007, um dos mais prestigiosos reconhecimentos literários da América Latina.

O reconhecimento da obra ultrapassou as fronteiras acadêmicas. Em 2022, Um defeito de cor foi incluído na lista dos 200 livros fundamentais para entender o Brasil, elaborada pela Folha de São Paulo, ocupando a sétima posição. A crítica especializada não hesitou em compará-lo a clássicos como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, evidenciando sua importância no cânone literário brasileiro.

A obra também encontrou eco na cultura popular: em 2024, a escola de samba Portela se inspirou no romance para criar seu samba-enredo, levando a história de Kehinde aos milhões de espectadores do Carnaval carioca e ampliando ainda mais sua visibilidade.

Um defeito de cor representa muito mais que uma narrativa histórica bem documentada. A obra oferece uma perspectiva fundamental para compreendermos o Brasil do século XIX: o olhar feminino e negro sobre a escravidão e a resistência. Ana Maria Gonçalves dá voz às mulheres negras que foram protagonistas de sua própria história, mas cujas experiências raramente encontraram espaço nas narrativas tradicionais.

Através de Kehinde, a autora explora temas universais como identidade, maternidade, liberdade e ancestralidade, sempre ancorados na experiência específica da diáspora africana. O romance provoca emoções intensas — do lamento à indignação —, convidando o leitor a confrontar aspectos dolorosos de nosso passado que ainda reverberam no presente.

A eleição de Ana Maria Gonçalves para a Academia Brasileira de Letras transcende o reconhecimento individual de seu talento. Representa uma mudança paradigmática em uma instituição que, por 128 anos, manteve-se predominantemente masculina e branca. Sua presença na ABL simboliza não apenas a inclusão de uma escritora negra, mas a abertura para perspectivas historiográficas e literárias que foram marginalizadas por décadas.

Contrariando estereótipos que reduzem a experiência negra brasileira apenas ao sofrimento e à violência, Ana Maria Gonçalves demonstra que a população negra é também protagonista de histórias de resistência, superação e triunfo intelectual. Sua trajetória — da publicidade independente à cadeira na ABL — ilustra as múltiplas possibilidades de realização que emergem quando talentos encontram oportunidades de se expressar plenamente.

Sua eleição para a Academia não é apenas um marco individual, mas um sinal de que a literatura brasileira está finalmente se abrindo para a riqueza de vozes que sempre estiveram presentes em nossa sociedade, aguardando o momento certo para ocupar os espaços que lhes pertencem por direito. Em Um defeito de cor, Ana Maria não apenas conta uma história; ela reescreveu a forma como entendemos nossa própria narrativa nacional.


(*) Maristela Gripp é doutora em Estudos Linguísticos pela UFPR e professora do curso de Letras na UNINTER.


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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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