Dor Animal, Autonomia e Bioética: Como a Medicina Veterinária Está Mudando para Proteger os Pets
Entenda por que reconhecer a dor dos pets como questão moral, repensar a autonomia e aplicar princípios bioéticos estão transformando o cuidado veterinário no Brasil e no mundo.
PRISCILA GONZALEZ
25/07/2025 10h26 - Atualizado há 1 dia
Marcelo Müller
Por Dr. Marcelo Müller Os avanços da medicina veterinária nas últimas décadas são notáveis: cirurgias mais seguras, protocolos anestésicos sofisticados e exames diagnósticos de alta precisão. Contudo, por trás dos equipamentos de última geração, emerge um movimento silencioso – e possivelmente mais revolucionário: a incorporação da bioética e da ciência do bem-estar animal como pilares centrais no cuidado de cães e gatos. A dor que transcende o aspecto fisiológico Historicamente, a dor animal era compreendida exclusivamente como um processo fisiológico. Atualmente, reconhecemos sua dimensão moral.
Não se trata apenas de aplicar escalas de avaliação álgica ou selecionar analgésicos mais eficazes, mas de reconhecer que cada animal possui preferências, emoções e formas individuais de vivenciar o sofrimento que demandam mais que prescrição médica – exigem empatia, respeito e compromisso ético. Evidências científicas demonstram que o manejo inadequado da dor aguda pode evoluir para quadros de dor crônica mal-adaptativa, comprometendo significativamente a qualidade de vida dos pacientes. Apesar da disponibilidade de diretrizes clínicas e literatura científica consolidada, muitos animais ainda recebem tratamento analgésico insuficiente. As causas incluem não apenas deficiências na atualização profissional, mas também a ausência de reflexão sobre o valor moral da dor animal. Em outras palavras, o dever de aliviar o sofrimento transcende a esfera clínica, constituindo uma obrigação ética fundamental. Autonomia: um paradigma adaptável à medicina veterinária? Na medicina humana, o princípio da autonomia representa um dos fundamentos bioéticos centrais, garantindo ao paciente o direito de decidir sobre seu próprio corpo mediante informações adequadas e consentimento livre e esclarecido. Na prática veterinária, entretanto, surge um questionamento fundamental: como aplicar esse princípio quando o paciente não possui capacidade comunicativa? Na clínica veterinária, a tomada de decisão recai sobre o tutor, gerando um dilema bioético complexo: respeitar a autonomia do tutor equivale necessariamente a respeitar o melhor interesse do animal? Estudiosos em bioética veterinária argumentam que essa equivalência não é automática. Diferentemente da medicina humana, onde a autonomia representa autodeterminação, na veterinária ela se transforma em heterodeterminação – alguém decide sobre outro ser senciente sem que este possa consentir ou recusar. Este modelo corresponde ao conceito bioético de “proxy decision-making” ou decisão por procuração, utilizado em pediatria para pacientes pediátricos ou em geriatria para pacientes com capacidade decisória comprometida. O proxy implica uma obrigação moral: decidir sempre priorizando o melhor interesse do paciente. No contexto jurídico atual, contudo, os animais permanecem classificados como propriedade, permitindo que tutores decidam com base em interesses próprios – econômicos, emocionais ou práticos – mesmo quando divergem do bem-estar do animal. Quando a autonomia do tutor compromete o bem-estar animal Situações clínicas cotidianas ilustram esse conflito ético. Tutores que recusam protocolos analgésicos adequados por limitações financeiras, minimizam sinais de sofrimento animal ou prolongam quadros dolorosos por negação. Outros solicitam eutanásia de animais saudáveis por razões como mudança de residência ou indisponibilidade temporal. Nessas circunstâncias, o médico-veterinário enfrenta um dilema moral: atender às demandas do tutor ou defender o melhor interesse do paciente? Na pediatria humana, decisões por procuração são supervisionadas por conselhos tutelares e órgãos de proteção, visando garantir que responsáveis não prejudiquem a criança. Na medicina veterinária, a legislação raramente intervém, delegando ao médico-veterinário o papel de última instância de proteção do animal.
Médico-veterinário: executor técnico ou defensor ético? Esta reflexão nos conduz a um questionamento fundamental sobre a identidade profissional: qual o verdadeiro papel do médico-veterinário? Atuar exclusivamente como técnico que executa as decisões do tutor, ou também como advogado moral do animal, representando quem não possui voz? Muitos especialistas defendem que veterinários devem adotar o modelo “pediátrico” de atuação, no qual o profissional avalia não apenas as condições clínicas, mas também o melhor interesse moral do paciente. Esta abordagem, contudo, apresenta complexidades, exigindo desenvolvimento de competências em comunicação ética, habilidades de diálogo e disposição para enfrentar dilemas morais complexos. Pesquisas indicam que essa sobrecarga ética pode gerar sofrimento moral, ansiedade e burnout, especialmente quando o profissional identifica que o tutor está optando por condutas prejudiciais ao animal, mas não possui amparo legal para intervir efetivamente. O futuro da medicina veterinária: ciência, ética e liderança O contexto social contemporâneo evolui rapidamente. Os pets são considerados membros da família, a sociedade demanda padrões éticos mais elevados e o conceito de One Health integra as dimensões de saúde animal, humana e ambiental. Neste cenário, o médico-veterinário do século XXI necessita mais que conhecimento técnico especializado. É fundamental dominar a ciência do bem-estar animal, compreender princípios bioéticos, desenvolver habilidades de comunicação eficaz e liderar processos de transformação social. Não basta diagnosticar e tratar enfermidades; é necessário garantir qualidade de vida, promover dignidade e advogar pelo reconhecimento moral dos animais como seres sencientes. Considerações finais A revolução ética na medicina veterinária já está em curso. Ela não reside nos equipamentos de diagnóstico por imagem ou nos sistemas de gestão digital, mas na transformação do olhar de cada veterinário que escolhe enxergar o paciente na mesa de exame não apenas como organismo biológico, mas como ser que sente, sofre e merece consideração moral. Esta mudança paradigmática redefine não apenas o cuidado individual, mas toda a profissão veterinária – e, potencialmente, a forma como a sociedade se relacionará com os animais no futuro. O desafio está posto: estamos preparados para assumir esta responsabilidade ética? Sobre o autor Dr. Marcelo Müller é médico-veterinário graduado pela UNIGRANRIO, com mestrado em Pesquisa Clínica pelo Instituto Nacional de Infectologia e especialização em Clínica Médica e Cirúrgica de Pequenos Animais pela Qualittas. Atua em atendimento veterinário domiciliar no Rio de Janeiro e é membro da Associação Nacional de Médicos Veterinários. Também é autor de artigos sobre bioética, direitos animais e o futuro do cuidado veterinário no Brasil.
Dr. Marcelo Müller
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PRISCILA GONZALEZ NAVIA PIRES DA SILVA
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