“A (Ré)tomada da Palavra ou A Mulher que Não se Vê”: Zózima Trupe encena em um ônibus as invisibilidades humanas

O trabalho celebra os 18 anos da companhia com inspiração na ativista negra norte-americana Rosa Parks e na história de vida de Flávia Diniz e reflete que se na sociedade atual a mulher preta é invisível, a mulher preta com deficiência nem ao menos existe.

MARINA FRANCO
24/06/2025 10h33 - Atualizado há 1 mês

“A (Ré)tomada da Palavra ou A Mulher que Não se Vê”: Zózima Trupe encena em um ônibus as invisibilidades
Leonardo Souzza
 

Uma mulher negra, usuária de cadeira de rodas, está no ponto de ônibus. Dá o sinal. O motorista não para e segue viagem. Esse é o mote criado pela Zózima Trupe para o espetáculo que celebra os 18 anos do grupo, em 2025. Quem dá vida à cena é a performer Ma Devi Murti, que usa o ônibus — objeto de pesquisa da companhia — como ponto de partida para refletir sobre esse meio de transporte enquanto espaço contemporâneo de opressão.

Desde 2007, a Zózima ocupa o ônibus como palco, reafirmando seu compromisso com a descentralização e a democratização do acesso às artes. Agora, estaciona sua mais nova criação, “A (Ré)tomada da Palavra ou A Mulher que Não se Vê”, no Terminal Parque Dom Pedro II (de 4 a 13 de julho) na Praça das Artes (de 7 a 9 de agosto) e na Praça Franklin Roosevelt (de 18 de julho a 28 de setembro), com sessões às sextas e sábados, às 20h, e aos domingos, às 19h (e quinta, 7 de agosto às 20h). A temporada é gratuita e reúne 30 apresentações — um marco inédito na trajetória do grupo, que tradicionalmente distribui sessões por múltiplas datas e locais. O projeto foi contemplado na 19ª edição do Prêmio Zé Renato de Apoio à Produção e Desenvolvimento da Atividade Teatral para a Cidade de São Paulo.

Com dramaturgia de Shaira Mana Josy — do Slam Dandaras do Norte — e Piê Souza, atuação de Ma Devi Murti e acompanhamento musical de Victória dos Santos & Aworonke Lima, o espetáculo dá voz às existências silenciadas, denunciando o descaso, a violência, o racismo, o capacitismo, o patriarcado e a pobreza.

A obra conta a história de Rosa, uma passageira comunicativa, trabalhadora da limpeza, que tem olhar atento para as injustiças sociais. Em certo dia, ela exige que o motorista pare para uma mulher negra em cadeira de rodas. Ao descer para ajudá-la, o público vê apenas uma cadeira de rodas vazia.

“Somente nossa protagonista enxerga essa mulher e começa a perguntar sobre sua vida. Nesse momento, criamos a imagem de um navio negreiro, porque muitas pessoas enxergam o ônibus como uma versão contemporânea desse espaço tão opressor”, explica o diretor Anderson Maurício.

Inspirado na trajetória de Flávia Diniz (1983–2024) — mulher preta, com deficiência, ativista, mãe solo, LGBTQIAP+ e integrante do coletivo VNDI (Vidas Negras com Deficiência Importam) —, o espetáculo revela as múltiplas camadas de opressão que atravessam mulheres negras e pessoas com deficiência, ao mesmo tempo em que reivindica espaço, voz e visibilidade.

O ônibus como catalisador de mudanças

A personagem também se inspira na ativista negra norte-americana Rosa Parks, que, em 1955, em Montgomery, Alabama, se recusou a ceder seu assento a um homem branco no transporte público. Seu gesto desencadeou um boicote de um ano aos ônibus da cidade e se tornou um marco na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, culminando na decisão da Suprema Corte que proibiu a segregação nesses veículos.

“Para nós, esse acontecimento é extremamente simbólico. Uma mulher, sozinha, no cotidiano, se insurgiu contra a ordem vigente e provocou uma transformação profunda. Muitas vezes, acreditamos que as revoluções precisam ser grandiosas, mobilizar multidões, mas, na verdade, qualquer gesto — por mais trivial que pareça — pode ser uma fagulha de reflexão e mudança. É isso que queremos provocar”, afirma o diretor.

 


“Os usuários do coletivo ficaram mais negros na pandemia. O ônibus ficou lotado de pessoas pretas que não puderam parar. E quem liga? Quem pára um pouco para ouvir as histórias das mulheres pretas? Qual tom que se entoa ao falar sobre viver? 

Quem quer vir trocar de lugar com essa mulher?”
Trecho da dramaturgia de “A (Ré)tomada da Palavra ou A Mulher que Não se Vê”

 


A pandemia escancarou desigualdades, especialmente na população negra, mais exposta por depender do trabalho presencial. Dados da SPTrans mostraram que, na retomada, 57% dos passageiros de ônibus em São Paulo eram mulheres jovens e negras, e 70% seguiam usando transporte coletivo, evidenciando a desigualdade no acesso ao trabalho remoto. 

O espetáculo questiona a crueldade do sistema capitalista exploratório-predatório que faz da Mulher Preta uma Atlas contemporânea, condenada a carregar o mundo nas costas para sustentar uma sociedade estruturalmente desigual. “Como contraponto, a figura do motorista representa o patriarcado — e até o próprio capital — que não pode parar, operando sob a lógica da velocidade, da produtividade e da exclusão”, completa Anderson.

No processo de criação de “A (Ré)tomada da Palavra ou A Mulher que Não se Vê”, o coletivo se deparou com um paradoxo que evidencia os limites da inclusão no transporte público. Como os ônibus oferecem apenas um espaço para pessoas que usam cadeira de rodas, quando esse elemento foi incorporado à cena, os espectadores que também dependem desse recurso passaram a não ter onde se acomodar. “Se todos os ônibus oferecem só um único lugar, como, então, ampliar essa discussão de forma concreta?”, questiona o diretor.

Rodas de Conversa

Além das apresentações, o grupo organizou cinco rodas de conversa, que serão realizadas no Espaço Cultural Adebanke (Rua Durande, 175 – Artur Alvim, São Paulo) — um centro artístico de referência no fortalecimento da cultura afro-brasileira e no enfrentamento das desigualdades racial e social. Os encontros irão abordar temas que dialogam diretamente com a dramaturgia apresentada.

 
  • 18 de Junho, quarta-feira

>>> 15h O rebolado como a retomada do corpo e da palavra: entendendo pré-conceitos. Ana Carolina Toledo. Educadora física pela USP e Doutoranda em Educação na UNIFESP, com pesquisa nas corpo-oralidades negras e danças pélvicas ancestrais. Tem formação em Pedagogia da Dança pela EDASP (Escola de Dança do Theatro Municipal de São Paulo) e em Bailes Folklóricos Cubanos pelo Conjunto Folklórico Nacional de Cuba (Havana). É coautora de diversos livros e ministra formações nessas áreas.

 

16h >>> Corpo, Movimento e Conquistas: A potência da arte e do esporte na vida de pessoas com deficiência. Suely Rezende. Atriz, dançarina e atleta paralímpica. Produtora Artística no Coletivo Mobilização Artística - CMA. Bacharel em Enfermagem, Pós Graduada em Administração Hospitalar, Especialista em Unidade de Terapia Intensiva e Docente em Cursos de Técnico de Enfermagem.

 

>>> 19h Boca Calada: O silenciamento dos prazeres. Flávia Rosa. Artista e terapeuta, cofundadora da Capulanas Cia de Arte Negra e da Nascente Terapia Corporal.

 
  • 26 de Junho, quinta-feira

>>> 14h Do livro: Cotidiano, eu me lembrei. Marli Aguiar. Escritora, graduada em Letras/Espanhol pela UNIFESP e militante negra feminista.

 

>>>15h – Reflexões do livro “Poesias pós-parto”. Priscila Obaci. Escritora, artista e educadora formada pela em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC-SP.

SERVIÇO:

Espetáculo
“A (Ré)tomada da Palavra ou A Mulher que Não se Vê”
Data completa: de 4 de julho a 28 de setembro de 2025

Ingressos: gratuitos Informações: @zozimatrupe

Duração: 60 minutos Classificação: 12 anos
Gratuito e aberto ao público, com retirada de ingressos pelo Sympla

 

TERMINAL PARQUE DOM PEDRO II - PLATAFORMA 0
Data: 4 a 13 de julho, às sextas e aos sábados, às 20h, e, aos domingos, às 19h
Endereço: Av. do Exterior, s/nº - Sé

Link da Sympla AQUI

 

PRAÇA DAS ARTES- FLIPEI

Data: 7, 8 e 9 de agosto - quinta, sexta e sábado às 20h 

Endereço: Av. São João, 281 - Centro Histórico de São Paulo, São Paulo

Link da Sympla AQUI

 

PRAÇA FRANKLIN ROOSEVELT - S/N - BELA VISTA
Data: 18 de julho a 28 de setembro, às sextas e aos sábados, às 20h, e, aos domingos, às 19h 

Link da Sympla AQUI

Rodas de Conversa

Espaço Cultural Adebanke

Endereço: Rua Durande, 175 – Artur Alvim, São Paulo – SP, 03694-080


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