A jornada diagnóstica de uma pessoa com uma doença rara pode levar anos, muitas vezes se estendendo por décadas, e tendo como principais desafios o desconhecimento dos profissionais da saúde e a falta de estruturação de serviços para atender essa população. Uma doença é considerada rara quando afeta até 65 a cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 a cada 2000 pessoas.
Apesar de individualmente raras, estima-se que cerca de 13 milhões de brasileiros tenham uma das mais de 8000 doenças raras conhecidas, ou seja, um número suficiente de pessoas espalhadas pelo Brasil que poderiam ocupar toda a cidade de São Paulo.
A jornada diagnóstica de uma pessoa com doença rara em geral se inicia cedo: aproximadamente 75% dessas doenças são identificáveis na infância e 30% vão a óbito antes dos cinco anos de idade. Apesar desse dado, não há uma idade limite para uma pessoa começar a apresentar sintomas de uma doença rara, podendo ocorrer, e ser diagnosticada, em qualquer fase da vida.
Comumente uma pessoa com uma doença rara enfrenta múltiplos desafios como acessibilidade a profissionais capacitados; diversos diagnósticos errados ao longo da vida, que por vezes levam à tratamentos, e cirurgias, desnecessárias; a necessidade de judicialização para acesso aos exames e medicações de alto custo; prejuízos sociais, culturais e profissionais, além de preconceitos. Não raramente, podemos entender a jornada pelo diagnóstico e tratamento como uma verdadeira Odisseia da Doença Rara.
Se por um lado, a falta de formação adequada dos profissionais de saúde no tema se mostra como um gargalo importante para suspeitar de uma doença rara, por outro, o pouco interesse, muitas vezes negligente, de diversas partes dos setores da saúde impactam diretamente a estruturação dos serviços para que haja acesso não somente aos profissionais devidamente capacitados, mas aos exames e terapêuticas que sejam necessários.
Entre esses diversos setores podemos destacar o poder público que deve levar em consideração as necessidades e orquestrar os demais setores em torno da causa; os gestores dos serviços de saúde, que precisam se apropriar da temática e identificar as oportunidades de implantar em seus serviços as linhas de cuidado e atenção para doenças raras, além de incentivar os profissionais a se capacitarem no assunto; o ensino superior da saúde, o que inclui não apenas a graduação médica mas de todas as profissões correlatas, já que os desafios envolvendo as doenças raras transpassam uma única área e necessitam de equipe multiprofissional treinada e adequadamente preparada para seus atendimentos; o incentivo em pesquisas na área, desafio crônico no Brasil em todos os setores, e que nas doenças raras se agudiza; e a ausência de interesse de muitas companhias da saúde e da indústria farmacêutica em investir no desenvolvimento de tecnologias e medicamentos para esse grupo de pacientes, devido os altos custos de desenvolvimento frente ao baixo retorno devido a raridade e o acesso aos diagnósticos.
Vale ressaltar que, em 2014, foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, cujo objetivo principal foi estruturar, dentro dos níveis de atenção em saúde, centros de atendimento e de referência em doenças raras, facilitando dessa forma a jornada diagnóstica e estabelecendo locais para seguimento desses indivíduos. Mais de 10 anos se passaram desde a implantação da portaria, e atualmente 18 centros credenciados junto ao Ministério da Saúde realizam atendimento em doenças raras através, a maioria concentrado no sul e sudeste do país, com alguns serviços no nordeste e centro-oeste. O norte do Brasil, por sua vez, é a região mais afetada pela ausência dos centros de referência, pois nenhum estado tem serviços credenciados.
Vale observar aqui que, a ausência de um Centro de Referência credenciado na Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras não necessariamente reflete a inexistência de serviços de atendimento em doenças raras ou genética médica, como é o caso de locais como o Acre, Pará e Mato Grosso, onde existem profissionais capacitados para atendimento dessas doenças em ambulatórios universitários, hospitais terciários e na saúde suplementar.
A ausência do credenciamento desses serviços na Política Nacional, não obstante, reflete as dificuldades dos gestores locais e da organização dos serviços para poder usufruir dos benefícios de ser credenciado como Centro de Referência, o que inclui acessibilidade a exames complexos e financiamento para melhor atendimento dessa população. Entre os profissionais de saúde que atuam diretamente com as doenças raras, devemos destacar aqui os médicos geneticistas.
O porquê da importância do médico geneticista fica evidente quando lembramos que cerca de 80% das doenças raras são de origem genética. O médico geneticista é o profissional que, por via de regra, fará a integração das necessidades gerais do paciente, atuando muitas vezes como um ponto central da equipe multidisciplinar, além de ocupar o papel central na investigação diagnóstica do paciente.
Atualmente, apenas 342 profissionais devidamente capacitados, ou seja portadores de título de especialista e/ou com residência médica em genética médica, estão em atividade em território nacional, o que representa aproximadamente 1 médico geneticista para cada 625 mil habitantes, número consideravelmente menor do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde, que sugere 1 para cada 100 mil habitantes.
A estimativa, portanto, é que o Brasil precisaria de aproximadamente 2100 profissionais especialistas em genética médica, distribuídos adequadamente pelas diversas áreas do território nacional, para atender a demanda de aproximadamente 13 milhões de brasileiros com uma doença rara. Segundo dados da Demografia Médica realizada pela Associação Médica Brasileira, houve um aumento de 80% das vagas de residência em Genética Médica nos últimos 7 anos.
Aliado ao aumento de oferta, vemos um crescimento constante do interesse pela especialidade dos formandos de medicina de todo país: em 2012 a relação de egressos da medicina que prestaram genética médica como residência era de aproximadamente 2 candidatos por vaga, enquanto em 2025 a proporção se tornou de aproximadamente 22 candidatos por vaga.
Esses números são referentes aos dados da Universidade Federal de São Paulo, mas é um cenário que se repetiu em todos os outros serviços que ofertam vagas na área. Também podemos destacar a inclusão de novos serviços com residência médica em genética médica nos últimos anos.
Esses pontos nos ajudam a identificar uma oportunidade vindoura de ampliar o acesso ao atendimento, com profissionais adequadamente qualificados em doenças raras pelo país, principalmente se tomadas medidas adequadas junto aos setores interessados, o que inclui ações como: a revisão dos currículos dos cursos de graduação em saúde, abordando a temática com o rigor necessário; a ampliação do número de vagas e credenciamento de novos programas de residência médica devidamente capacitados; a submissão para criação de Protocolos Clínicos de Diagnóstico e Tratamento, por parte das indústrias farmacêuticas que tenham tratamento medicamentoso para doenças raras, melhorando a previsibilidade de acesso e reduzindo a necessidade de judicialização; a revisão e ampliação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, com o credenciamento de novos centros de referência, assim como estudar a possibilidade de estruturar um fluxo de matriciamento e de teleatendimento para locais carentes de profissionais.
A Odisseia da Doença Rara é longa e não-linear: cada paciente terá suas próprias experiências. Semelhantemente, cada profissional que atua no setor, seja como médico, equipe multiprofissional, indústria farmacêutica, laboratório ou gestor, terá seus próprios desafios para tornar esse caminho mais otimizado, visando reduzir tempo e recursos para que assim possamos fazer a diferença para aqueles que tanto precisam.
Referências:
SCHEFFER, M. et al. Demografia Médica no Brasil 2023. São Paulo: Associação Médica Brasileira, 2023. 344 p. Disponível em: https://amb.org.br/wpcontent/uploads/2023/02/DemografiaMedica2023_8fev-1.pdf.
ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. RM_DemografiaMedica.pdf. https://amb.org.br/wpcontent/uploads/2025/02/RM_DemografiaMedica.pdf. BRASIL.
Ministério da Saúde. Portaria nº 199, de 30 de janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprova as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no 1 Sistema Único de Saúde (SUS) e institui incentivos financeiros de custeio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 21, seção 1, p. 47-50, 31 jan. 2014. BRASIL. Ministério da Saúde. Doenças Raras. https://www.gov.br/saude/ptbr/composicao/saes/doencas-raras. SOCIEDADE BRASILEIRA DE GENÉTICA MÉDICA (SBGM).
Residência Médica - SBGM - Sociedade Brasileira de Genética. https://www.sbgm.org.br/conteudo.aspx?id=12&area=departamento&pagina=residencia. Acesso em: 16 de abril de 2025
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NATHÁLIA ALICE RODRIGUES MEIRINHO LOPES
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