A poesia de Rodrigo Cabral ganha forma em “refinaria”, sua primeira obra, lançada pela Sophia Editora durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2024. O livro mergulha na transformação da paisagem da Região dos Lagos (RJ) e da memória do autor, utilizando versos acompanhados por ilustrações de Rapha Ferreira. O prefácio foi escrito por Júlia Vita, que também editou a obra, e a orelha é assinada por Thiago Freitas.
Rodrigo Cabral, 34 anos, nasceu em Campos dos Goytacazes e cresceu em Cabo Frio, onde fundou a Sophia Editora. Poeta e editor premiado, foi segundo lugar no prêmio Off Flip de 2024 na categoria Contos e destaque na categoria Poesia. Em 2023, conquistou o terceiro lugar no Festival de Poesia de Lisboa. Entre suas influências, estão nomes como Ferreira Gullar e Carlos Drummond de Andrade, além de obras como “Água-mãe”, de José Lins do Rego.
Nas páginas de “refinaria”, os poemas de Cabral traduzem o movimento incessante da vida e do território, a partir de uma linguagem que une referências locais e universais. Inspirado por Cabo Frio, cidade onde observa a Laguna de Araruama e a figueira centenária de sua infância, o autor reflete sobre memória, família e os processos internos da escrita. A obra também explora paralelos entre a geologia do pré-sal e a história da cana-de-açúcar em Campos dos Goytacazes.
Leia abaixo a entrevista completa com o autor sobre o processo de composição do livro.
Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam? Por que escolhê-los?
Nasci em Campos dos Goytacazes (RJ) e fui criado em Cabo Frio, na Região dos Lagos. Tenho uma ligação forte com a cidade, sobretudo porque praticamente vim ao mundo numa redação de jornal, já que meu pai, também jornalista, começou a editar, no ano do meu nascimento (1990), o periódico Folha dos Lagos. Fui criado na Rua Alice Torres, conhecida como “rua da árvore” devido a uma imponente figueira empostada perto do Canal do Itajuru, que liga a Laguna de Araruama à Praia do Forte. Durante a infância, caminhávamos pelas salinas até chegar ao mercado. Era um descampado, uma paisagem de sol e de sal que ainda faz pratear a memória. Todo esse cenário mudou. As salinas deram lugar a um novo bairro, o Novo Portinho. A “rua da árvore”, antes de terra, agora é asfaltada. Um antigo hotel jangada, onde crianças experimentaram os primeiros goles de Coca-Cola, também não está lá. Essas transformações estão na raiz de um poema cujo título é justamente “refinaria”. No livro, trato dessa refinaria de memórias, de cenários, do próprio texto editado, e isso com um olhar para o território: a restinga, as águas da Laguna de Araruama, as casuarinas, o sangue do operário cuja história e identidade o vento levou… Como editor da Sophia, tenho trabalhado há anos para formar catálogo com o objetivo primeiro de trazer à luz temas pertinentes à história, à memória e ao patrimônio histórico material e imaterial. Isso se tornou uma das principais características da editora. Naturalmente, a produção da Sophia também deságua na minha escrita.
O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo?
Comecei a escrever “refinaria” no início de 2022. Naquele período, tinha algumas ideias e livros pela metade, na gaveta. Em algum momento, percebi que o primeiro precisava partir daqui, do meu lugar. Precisava ser um abrir de janelas para os cenários que estavam diante de mim. Era necessário ouvir o que esses cenários diziam sobre as memórias, sempre borradas e fragmentadas. É claro que isso, no poema, transforma-se em outro espaço, em outro tempo, e é reescrito de acordo com as percepções de quem lê. De todo modo, o que me moveu, primeiro, foi me reconhecer como um poeta da restinga. Ou um “poeta da orla”, como escreve a Júlia Vita no prefácio. Boa parte da produção surgiu durante a oficina do Marcelino Freire e da formação em poesia promovida pela Escola da Palavra, coordenada por Rafael Zacca e Lucas van Hombeeck. Na sequência, conheci a Júlia Vita, poeta e autora do livro “Água-viva”, publicado pela Córrego. Júlia foi a editora de “refinaria”. A partir das provocações e da sensibilidade dela, deixamos poemas de lado, acrescentamos outros e, então, depois de tantos processos, chegamos à versão final.
Em sua análise, quais as principais mensagens que podem ser transmitidas por “refinaria”?
O livro é uma tentativa de apreender o que está lá fora. Ou seja, a poesia não está no livro. Está no que foi vivido. Acredito na poesia que se aproxima da vida com toda a sua camada de complexidade, controvérsia, dualidade e mistério. Concebo a obra, portanto, como refinaria, não em busca de compreender, tampouco de decifrar, mas, sim, de contemplar os processos de transformação de um território, de um indivíduo, de uma escrita; e, também, de analisar, com a ponta dos dedos, aquilo que não evapora, aquilo que permanece.
O que esse livro representa para você? Você acredita que a escrita te transformou de alguma forma?
Durante o processo de montagem de “refinaria”, não apenas a escrita mudou, como o escritor, ao se deparar, de repente, com fragmentos de memória no espelho d’água. O livro, aliás, parte do pressuposto de que tudo é, necessariamente, mudança contínua. A partir da escrita de “refinaria”, passei a me interessar cada vez por vasculhar cenários e palavras pertinentes aos lugares que habito ou que habitei. Durante o processo, por exemplo, escrevi o conto “O encontro do lamparão com a galesca”, que trata de um diálogo entre o linguajar de Arraial do Cabo, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, e o de Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense. O conto ficou em segundo lugar no Prêmio Off Flip de Literatura em 2024.
Como a bagagem do que você escreveu anteriormente ajudou na construção da obra?
Como autor, carrego a bagagem dos livros que escrevi e que não publiquei e, principalmente, dos que vivi e ainda não escrevi — ainda. Afinal, “refinaria” é meu primeiro livro. Como editor, posso falar que fui muito influenciado pelas obras publicadas pela Sophia e pelos estudos de pesquisadores da Região dos Lagos, como Ivo Barreto, Meri Damaceno, Leandro Miranda, Luiz Guilherme Scaldaferri, Gessiane Nazario, João Cristóvão, José Correia Baptista, entre tantos outros.
Por que escolheu o gênero da poesia? Desde quando escreve esse gênero?
Rabisco poemas desde novo. As produções iam ficando por cadernos e arquivos em antigos computadores. De repente, dei-me conta de que a vida é curta e de que precisava organizar meus textos. Publiquei um fanzine com o Subverso, selo literário independente coordenado pelo meu amigo e poeta Frederico Tavares, e depois também passei a colaborar com alguns sites literários, como o Fazia Poesia. A poesia não foi uma escolha racional. Foi algo que se impôs naturalmente diante de uma pulsão, uma necessidade de escrever por meio de imagens, recortes, melodias descompassadas, delírios. E a poesia é, também, um lugar da rebeldia, da desordem, da alucinação por meio da palavra, da invenção e da desinvenção. Um grito contra dias maquinais e automatizados.
Quais são suas principais influências artísticas e literárias? Quais influenciaram diretamente a obra?
Entrei no processo de escrita sob muita influência de escritores como Roberto Piva, Claudio Willer, Lawrence Ferlinghetti (este também um poeta-editor, fundador da lendária City Light Books), Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Olga Savary, entre tantos outros. Aliás, conheci o Rapha Ferreira, artista plástico que assina as ilustrações do livro, enquanto ele declamava “A piedade”, poema do Piva, durante uma feira literária. Destaco especialmente a influência de José Lins do Rego, mais especificamente sua obra “Água-mãe” (1941). Trata-se do primeiro romance do escritor paraibano a ser ambientado fora do Nordeste. Foi justamente Cabo Frio que inspirou José Lins do Rego a escrever o livro. Ele esteve aqui durante a década de 1930 a trabalho — era fiscal de imposto de consumo. Apaixonou-se pelas paisagens e as colocou em seu livro — as casuarinas, a figueira, a fantasmagórica casa azul e a Laguna de Araruama, muitas vezes referenciada por ele apenas como “Araruama”, espécie de entidade. Fato curioso é que, no poema “refinaria”, falo sobre uma imponente figueira, a única coisa que não muda na “rua da árvore”. Em “Água-mãe”, José Lins do Rego também descreve uma figueira que estaria localizada bem próxima às águas da Araruama. O historiador Elisio Gomes diz que a figueira da Rua Alice Torres — a “rua da árvore” — é a mesma narrada escritor. Coincidências à parte, fato é que um trecho da obra de José Lins do Rego serve de epígrafe principal do meu livro e para um dos poemas. O título é dividido em dois capítulos. Cada um deles carrega uma epígrafe: o primeiro é um poema escrito por Olga Savary enquanto esteve em Arraial do Cabo e publicado em Sumidouro (1977); e, o segundo, extraído de uma canção de Victorino Carriço, chamada “Baixo Grande”. Aliás, o contato com a obra poética de Carriço, poeta nascido em São Pedro que se transformou em flâneur, indo e vindo sempre com um versinho no bolso, também foi bastante significativo. Estive em contato com a poesia dele a vida inteira, já que se trata do autor do hino da escola em que estudei desde os seis anos e, também, do hino de Cabo Frio e de outros municípios da região. Tanto tempo depois, tive a oportunidade de conhecer sua produção com ainda mais intimidade, já que me tornei amigo de sua filha Ercilia Carriço (in memorian) e de seus netos Fernanda Carriço e Junior Carriço, este um grande poeta e autor de um dos meus livros de cabeceira — “Recovecos” (2017, Editora Comunicação).
Como você definiria seu estilo de escrita? Que tipo de estrutura você adotou ao escrever a obra?
No início dos processos de composição, estava interessado na imagem em estado bruto; no poema em estado bruto também, como forma. Queria escrever poemas longos, em fluxo de consciência, guiando-me por flashes de memória. Depois, fui trabalhando e retrabalhando, refinando, mas ainda assim muitos dos poemas mais longos venceram a imposição do refino e continuaram com essa característica, digamos, impolida. Em contraposição, mais adiante passei a me interessar mais pela concisão, pelo lampejo que um poema curto pode oferecer. Lembro que fiz um arquivo chamado “pitadas de sal” com esses poemas menores para apresentar à Júlia Vita, editora do livro. Então, “refinaria” traz também essa contraposição de formas, mas não de forma segmentada. Os poemas caudalosos e os enxutos estão entrelaçados. Falo sobre os processos de refino de memórias, de sentimentos e de percepções e, em contraponto, digo que é necessário inaugurar uma antirrefinaria, o que tem a ver com a espontaneidade, com a vida que precisa ser vivida de bate-pronto, com o texto escrito sem tanta racionalização, pelo menos num primeiro momento. O que é a vida sem um porém?
Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Praticamente nasci numa redação de jornal, que a frequentei desde muito novo para esperar meu pai no trabalho. O cheiro de jornal impresso sempre foi muito forte durante toda a minha vida. Durante a adolescência, quis entrar para aula de música. Pedi um violão ao meu pai. Ele negociou que atenderia a meu pedido, mas, antes, eu deveria fazer uma espécie de “estágio”, para que eu escrevesse algumas redações. E lá fui eu. Os textos eram sempre corrigidos com muita tinta vermelha. No fim das contas, ganhei o violão, que me acompanha até hoje, e um gosto pela escrita e pela edição, também. Veja bem, não tenho medo da caneta vermelha. Essa é a refinaria — editar e ser editado, inclusive pelo leitor — necessária para viver, para terminar uma obra. Algumas dessas memórias estão no poema “chefe”. Anos depois, decidi cursar Jornalismo. Acontece que, confesso, a objetividade e a realidade muitas vezes sufocam. Escreveu Mallarmé: “É de ficar admirado que não exista uma associação, em todas as grandes cidades, entre os sonhadores que aí permanecem para supeditar um jornal que observe os acontecimentos sob a luz própria do sonho”. Estou tentando, ao meu jeito.
Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de produção?
Tenho feito diário de escrita, o que ajuda bastante. Algumas vezes, palavras ou frases se intrometem na minha mente. Digo que são “galhos”. Posso puxar e descobrir uma árvore inteira. Ou posso ignorar, deixar para lá, dizer que depois me sento para escrever — geralmente é a pior opção, porque o próximo dia pode ser de terra arrasada.
Quais são seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?
Quero continuar a refinaria. Não esta, pois agora já é texto consolidado. Meu desejo é escrever mais poemas e um romance. Meu desejo é escrever.
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VERIANA RIBEIRO ALVES
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