Além do próprio caruru, que é feito com quiabo, tem pipoca, representando as flores de Omolu, farofa de dendê para Exu, abará, feijão fradinho, feijão preto, canjica branca, pedaços de cana de açúcar e rapadura, banana frita no azeite para Oxumarê, entre outros alimentos. Na celebração baiana está muito presente o sincretismo que marca as religiões de matriz africana no Brasil, que junta os santos católicos com os orixás.
“Esses gêmeos africanos ibejis vão ser sincretizados aqui no Brasil como Cosme e Damião. O culto em África é tão forte, entre os Yorubás, sobretudo, que chegou a reconfigurar o culto de Cosme e Damião no Brasil. Cosme e Damião [santos católicos] não eram crianças, eram médicos adultos que fora, perseguidos por promoverem um tipo de medicina para o povo, o que os aproximou, na ideia do coronelismo, da bruxaria, porque curavam pessoas necessitadas. Por conta disso, pagaram o preço por feitiçarias, foram decapitados e morreram em 300 depois de Cristo (D.C). Por conta dos gêmeos africanos, que são crianças, os gêmeos católicos que são europeus trazidos pelo colonizador acabam também se transformando em crianças. A força do culto em África chega ao Brasil de forma tão potente, que consegue transformar o culto aos santos católicos em culto africano, transformados em crianças”, revelou Freitas em entrevista à Agência Brasil.
Segundo o professsor, a tradição de comemorar o dia 27 de setembro com o chamado Caruru de Cosme, uma comida à base de quiabo, na Bahia, significa também um banquete que inclui outros pratos dedicados a orixás. “O caruru, também chamado de Caruru de Ibejis, é uma festa, um ritual. Muita gente chama também de Caruru de Promessa, porque a ideia de ser para criança, os ibejis eram gulosos e comiam tudo, até o que não era comida deles. No prato de caruru, a comida deles é o feijão fradinho, que no candomblé também se dedica a Oxum. A tradição nasce dentro dessa ideia de que deveriam dar o que comer a divindades. Como os ibejis queriam comer de tudo, então tem diversas comidas de todos os orixás”, explcou.
A intenção de oferecer comidas para divindades acaba se aproximando também dos cultos indígenas, que têm o mesmo objetivo. “Para povos africanos, assim como para os indígenas aqui no Brasil, o culto é feito através da oferta de alimentos ou das comidas. Tem gente diz que a palavra caruru vem da língua banto, kaluli, mas também de uma língua tupi que é a palavra caarariru, porque indígenas também davam comidas às suas divindades”, afirmou Freitas, lembrando que, além da cultura africana, existe uma influência forte da indígena na Bahia.
“A gente fala muito da baiana negra, da Bahia como a Roma negra, mas não pode esquecer a participação da cultura indígena neste estado. Muitas etnias, as mais conhecidas, são as do sul, tupinambá, pataxó, pataxó-hã-hã-hãe, mas, para o norte, têm muitos tuxás. Então tem também uma influência da cultura indígena. Nesse encontro de africanos, indígenas e europeus, pelo português colonizador, é que surge o Caruru de Cosme, o Caruru de Ibejis, o Caruru de Promessa, dando continuidade a uma ideia de devoção”, observou.
A celebração na Bahia, que já se espalhou para outros estados, começa com a oferta de pratos a sete meninos que simbolizam Cosme, Damião, Doú, uma corruptela de Idowu em língua africana [também conhecido como Doum], Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi. É comum ver também na imagem que representa os gêmeos e figura de um terceiro irmão chamado de Doú ou Idowu, nome dado, em uma família africana, ao irmão que nasce depois de gêmeos.
Desde cedo, Mãe Nilce de Iansã, de 72 anos, vive com a tradição de homenagear Cosme e Damião no dia 27 de setembro, mas com uma certa diferença de muitas crianças. Como o seu terreiro tem origem na Bahia, o costume é oferecer o chamado Caruru de Cosme, mas, quando era criança, também ia atrás dos saquinhos de doces. “Eu fui nascida e criada dentro de um terreiro, mas também vivi com a prática de doces porque a minha família também dava doces e a gente pegava nas ruas”, revelou à Agência Brasil.
Mãe Nilce lembrou com satisfação que, na época, morava em Ramos, na zona norte do Rio e era vizinha do compositor Pixinguinha, cuja esposa tinha hábito de distribuir doces finos como cajuzinho, brigadeiro e beijinho. “Ela botava em um guardanapo grande e fazia tipo uma trouxinha. Eu e minha irmã e outras crianças da rua íamos junto com uma senhora em várias casas e, na casa do seu Pixinguinha, porque o doce lá era gostoso. A gente pegava aqueles doces com o maior prazer. Então eu conheço as duas práticas. Eu estou falando sobre vivência.”
Ricardo Freitas, que é carioca e filho de pai baiano, mas mora em Salvador há 20 anos, levou para lá também a tradição de oferecer saquinhos com doces. Ele disse que atualmente na cidade já tem quem, além de oferecer o prato de caruru, inclui doces chamados lá de queimado, bombons de chocolate e nego bom que no Rio é conhecido como bananada. “Eu lembro da minha infância no Rio. Quando eu dou, ponho em um saco de congelamento, que muita gente está fazendo também. É uma variação do saquinho de papel com a imagem de Cosme e Damião”, afirmou, sorrindo.
A cozinheira baiana Tina do Acarajé, de 64 anos, que se mudou para o Rio há 40 anos e mora em Vila Isabel, na zona norte da cidade, manteve a tradição durante esse tempo. Ainda na Bahia era comum ir a terreiros que ofereciam a comida às crianças. “Já sabia onde tinha. Eu recebia convite e ia”, relatou à reportagem.
No Rio, Tina passou a fazer festas para oferecer o prato a amigos e agradecer por bênçãos alcançadas por meio das entidades. Este ano, no entanto, Tina não poderá fazer porque se recupera de uma operação no cérebro, mas garantiu que logo que puder vai retomar a celebração. “Assim que passar essa fase vou voltar a fazer para os amigos. Meu irmão fez até uma promessa para Cosme por causa dessa cirurgia que, graças a Deus, foi muito boa, para eles poderem me curar total para eu cair no trabalho”, prometeu.
E foi com alegria que o ogã Ricardo comemorou o fato do Caruru de Cosme ter sido aprovado pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC), como Patrimônio Cultural Imaterial da Bahia, depois de estudos do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. O Diário Oficial da Bahia desta sexta-feira publicou o decreto assinado pelo governador Jerônimo Rodrigues com o reconhecimento do título.
De acordo com o governo baiano, o ato de entrega do título será realizado hoje pelo secretário de Cultura, Bruno Monteiro, durante o I Seminário de Patrimônio Imaterial – Reconstruindo Memórias, no Museu de Arte da Bahia, no Corredor da Vitória.
“O culto a São Cosme e Damião, os santos gêmeos da igreja católica, ganharam especial aspecto na cultura afro-brasileira e afro-baiana ao encontrarem correspondência com o culto aos ibejis, divindades gêmeas das religiões afro-brasileiras. A festa é no dia 27 de setembro, com o tradicional caruru”, informa o site do governo da Bahia, lembrando que neste dia é costume também celebrar os santos e entidades com festas de sambas de roda, muito tradicionais no estado.
“A festa se dá a partir de várias etapas para a sua realização, que ocorre de forma comunitária, com a participação das famílias e a celebração inclui práticas ritualísticas católicas e afro-brasileiras”, acrescenta o governo baiano.