A Dor Invisível: Como a Falta de Diagnóstico Compromete o Bem-Estar dos Pets

O silêncio que esconde o sofrimento: desvendando os sinais da dor crônica em cães e gatos

PRISCILA GONZALEZ
01/08/2025 08h27 - Atualizado há 9 horas

A Dor Invisível: Como a Falta de Diagnóstico Compromete o Bem-Estar dos Pets
Marcelo Müller

Por Marcelo Müller – Médico-veterinário com mestrado em Pesquisa Clínica, especializado em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais, bem-estar animal e atendimento domiciliar.


Quando o silêncio é um pedido de ajuda

Nem toda dor emite um som. Muitas vezes, ela se revela no olhar distante do pet, na relutância em subir no sofá, na mudança de rotina que passa despercebida. Em meus atendimentos domiciliares, percebo que a dor costuma ser confundida com idade, preguiça ou personalidade. Mas, em muitos casos, o animal está sofrendo — em silêncio.

Cães e gatos são especialistas em mascarar dor. É um traço evolutivo: esconder sinais de fraqueza garantia sobrevivência na natureza. Hoje, no entanto, esse instinto dificulta diagnósticos e atrasa tratamentos, comprometendo a qualidade de vida dos pets.

Ignorar ou banalizar esses sinais é mais do que um equívoco clínico. É uma falha ética diante de seres que sentem dor e sofrimento emocional — e têm o direito de viver sem isso.


Senciência animal: eles sentem — e sofrem

A ciência é clara: cães e gatos são seres sencientes. O artigo “Pain in Pets: Beyond Physiology” (Downing & Della Rocca, 2023) reforça que os pets não apenas percebem a dor, mas também a vivenciam emocionalmente. Isso torna o sofrimento silencioso ainda mais cruel.

A World Small Animal Veterinary Association (WSAVA) e a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) defendem que dor é uma ameaça direta ao bem-estar animal e precisa ser reconhecida, avaliada e tratada com rigor científico.


Sinais de dor: o que seu pet está tentando dizer

Durante meus atendimentos, encontro tutores bem-intencionados que desconhecem os sinais de dor crônica. Muitos desses comportamentos, infelizmente, são normalizados:

Comportamentais

  • Redução da atividade

  • Relutância para pular, correr ou brincar

  • Agressividade súbita ou apatia

  • Mudança no padrão de sono ou alimentação

Físicos

  • Lambedura excessiva de partes do corpo

  • Rigidez ao levantar

  • Vocalizações atípicas (suspiros, gemidos)

  • Postura encurvada, cabeça baixa

Em gatos (sinais mais sutis)

  • Falta de grooming

  • Isolamento ou troca de local de descanso

  • Alterações no uso da caixa de areia

Ignorar esses sinais não só prolonga o sofrimento como pode agravar quadros clínicos.


Diagnóstico precoce: a chave para quebrar o ciclo da dor

A ausência de diagnóstico precoce impede o tratamento efetivo de inúmeras condições. Entre as mais comuns que envolvem dor silenciosa estão:

  • Osteoartrite e displasia coxofemoral

  • Doenças dentárias (periodontite, fraturas, reabsorção felina)

  • Pancreatite, infecções urinárias, doenças gastrointestinais

  • Cânceres em fase inicial

Quanto antes a dor é identificada, mais efetivo é o tratamento — e maior é a chance de devolver conforto e bem-estar ao animal.


O papel do atendimento domiciliar

No atendimento domiciliar, o pet mostra quem realmente é — sem o estresse da clínica, sem disfarces. Observar o animal no próprio ambiente revela fatores ambientais que agravam ou perpetuam a dor.

Vantagens do atendimento em casa:
✔ Observação do comportamento natural
✔ Avaliação do ambiente (pisos escorregadios, escadas, acessos)
✔ Redução do estresse e da ansiedade
✔ Personalização do plano de manejo da dor

Essa abordagem amplia a capacidade diagnóstica e aproxima o veterinário da realidade vivida pelo pet e sua família.


Raças mais suscetíveis à dor crônica

Conhecer as predisposições genéticas ajuda na prevenção e vigilância precoce:

Cães

  • Dachshund, Basset Hound: hérnia de disco

  • Labrador, Golden, Pastor Alemão: displasias, osteoartrite

  • Rottweiler: risco elevado de osteossarcoma

Gatos

  • Persa, Maine Coon: cardiomiopatia, artrose

  • Siamês: reabsorção dental dolorosa


Quando a dor se torna um vício: o ciclo da sensibilização

Se não tratada, a dor pode se perpetuar mesmo após a cura da causa inicial. Isso ocorre devido à sensibilização central: o sistema nervoso passa a amplificar qualquer estímulo como se fosse dor. É a chamada “memória da dor”.

Ciclo da dor crônica

  1. Dor aguda → 2. Adaptação → 3. Cronificação → 4. Sensibilização

Nesse ponto, o animal pode desenvolver compulsões, ansiedade, depressão e até agressividade reativa.


Tratamento multimodal: abordagens que realmente funcionam

Tratar dor crônica exige uma combinação de estratégias:

Farmacologia personalizada

  • Analgésicos específicos

  • Adjuvantes neurológicos (gabapentina, amitriptilina)

  • Nutraceuticos

Ajustes no ambiente

  • Tapetes antiderrapantes

  • Camas ortopédicas

  • Rampas de acesso

Fisioterapia e reabilitação

  • Exercícios controlados

  • Acupuntura veterinária

  • Massagem terapêutica

Nutrição direcionada

  • Controle de peso

  • Dietas anti-inflamatórias

  • Suplementação articular


O tutor como agente da mudança

Você, tutor, é o primeiro a perceber que algo está errado. Sua observação é a base de um diagnóstico precoce e assertivo.

O que você pode fazer:

  • Documentar comportamentos incomuns

  • Filmar sinais suspeitos

  • Evitar automedicação

  • Conversar abertamente com o veterinário

  • Participar ativamente do plano de cuidado


Conclusão: dor não é normal. É sinal de alerta.

Nenhum pet precisa envelhecer sofrendo. Cães e gatos merecem envelhecer com dignidade, conforto e bem-estar. Cada hesitação, cada mudança de comportamento, cada olhar distante é uma chance de agir — de aliviar, de cuidar, de amar.

Na medicina veterinária moderna, identificar a dor não é apenas um ato técnico. É um compromisso com a vida que sente. A dor invisível só permanece invisível quando escolhemos não enxergar.


Sobre o autor

Marcelo Müller é médico-veterinário com mestrado em Pesquisa Clínica, especializado em clínica médica e cirúrgica de pequenos animais, bem-estar animal e atendimento veterinário domiciliar. Atua na promoção da saúde física, emocional e comportamental dos pets, com base nos princípios da medicina veterinária contemporânea e do reconhecimento da senciência animal.


Instagram: @marcelomullervet
Site: marcelomullervet.com.br
Bio: marcelomullervet.my.canva.site/

 


Notícia distribuída pela saladanoticia.com.br. A Plataforma e Veículo não são responsáveis pelo conteúdo publicado, estes são assumidos pelo Autor(a):
PRISCILA GONZALEZ NAVIA PIRES DA SILVA
[email protected]


FONTE: Marcelo Müller
Notícias Relacionadas »