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Natália Soriani* A recente notícia de que, a partir de agosto deste ano, qualquer cidadão brasileiro poderá ser atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em hospitais da rede privada trouxe esperança e certa dose de tranquilidade para a população. A medida, num primeiro momento, parece se apresentar como a solução definitiva diante das longas e morosas filas e da sobrecarga do sistema público. Contudo, sob a ótica do Direito da Saúde, por mais que a proposta seja de intenções elogiosas, está repleta de complexidades, com riscos que, ao invés de figurar como um avanço histórico na saúde pública brasileira, pode se transformar em uma perigosa cortina de fumaça.
Para compreender melhor tal complexidade, é preciso uma leitura acerca do fundamento constitucional e a realidade Legal por trás da medida. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 199, § 1º, é categórica ao estabelecer que a participação de instituições privadas no SUS deve ocorrer em caráter complementar. O texto é claro e, na prática, esclarece que a rede privada não é uma extensão automática da pública, e que ela deve ser acionada de forma subsidiária, ou seja, apenas quando os serviços públicos forem insuficientes para atender à demanda.
A materialização dessa complementaridade não é um ato de simples vontade política. Ela exige um arcabouço jurídico robusto, que tem início a partir da celebração de convênios ou contratos administrativos. Estes instrumentos, por sua vez, devem obedecer rigorosamente aos princípios da Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), que impõe transparência, isonomia e a busca pela proposta mais vantajosa para a administração pública.
No âmbito administrativo, há outro ponto. A legislação do SUS (Lei nº 8.080/90) dá preferência à contratação de entidades filantrópicas e sem fins lucrativos. A universalização do acesso a qualquer hospital particular, incluindo os de alto padrão com fins lucrativos, exigiria uma reengenharia normativa e um justificado interesse público que supere essa preferência legal.
Para além da questão administrativa, a iniciativa de extensão do atendimento do SUS por meio da rede privada de hospitais esbarra em questões pragmáticas que, se não resolvidas, podem gerar um caos jurídico e assistencial. Os critérios de acesso e o princípio da isonomia são parte desse conjunto de questões. Como garantir que um hospital de luxo, cuja cultura organizacional é voltada para o cliente de alto poder aquisitivo, aplicará os mesmos critérios de admissão e tratamento a um paciente do SUS? Verdade que a regulação via Central de Leitos do SUS é o caminho, mas a fiscalização para evitar que o paciente "público" seja preterido em favor do "privado" é um desafio monumental. A ausência de um protocolo claro e fiscalizável fere diretamente o princípio da isonomia, pilar do Estado de Direito.
Ainda no quesito fiscalização e transparência, surge a dúvida: quem fiscalizará a execução desses contratos? O Ministério da Saúde, as Secretarias Estaduais e Municipais, os Conselhos de Saúde e o Ministério Público têm o dever de zelar pelo bom uso do dinheiro público. No entanto, a pulverização de atendimentos em centenas de hospitais privados, cada um com sua própria gestão, criaria uma demanda de fiscalização sem precedentes. Sem um controle efetivo, a iniciativa corre o risco de se tornar um ralo de recursos públicos e um foco de favorecimentos indevidos, sem o mínimo controle de transparência.
Há, ainda, o fator remuneração e sustentabilidade do sistema que representam, sem dúvidas, o ponto mais sensível. A Tabela de Procedimentos do SUS, que serve de base para a remuneração dos serviços, é notoriamente defasada em relação aos custos reais e aos valores praticados no mercado privado. Qual seria o mecanismo de pagamento? Manter a Tabela SUS tornaria o negócio desinteressante para a maioria dos hospitais. Criar uma tabela especial para a rede privada geraria uma disparidade inaceitável com os hospitais públicos e filantrópicos, além de um enorme impacto orçamentário.
Todos esses pontos trazem à boa iniciativa um alto risco de judicialização em massa. Sim, pois a falta de regras claras é um convite à judicialização. Pacientes que se sentirem lesados ou preteridos buscarão o Judiciário. Hospitais insatisfeitos com a glosa de pagamentos ou com os termos contratuais farão o mesmo. O resultado pode ser o oposto do pretendido. Em vez de agilizar o acesso, a medida pode criar um limbo jurídico que paralisa o atendimento.
É fato e reconhecida a urgência de se utilizar toda a capacidade instalada no país para garantir o direito fundamental à saúde. Contudo, para que a ideia anunciada não se torne uma promessa vazia ou uma manobra política, é imperativo que a transição seja pautada pela mais estrita legalidade e planejamento.
Para que o sistema funcione sem riscos, é essencial contar com robustez na regulação, de modo que protocolos clínicos e fluxos de acessos unificados sejam rigorosamente controlados pelo gestor público do SUS. A publicação de todo e qualquer contrato, bem como os critérios de encaminhamento de pacientes deve contar com total e irrestrita transparência. Os contratos, vale ressaltar, devem conter os instrumentos jurídicos claros, que especifiquem obrigações, metas de qualidade, mecanismos de pagamento justos e sanções para o descumprimento. E, obviamente, uma fiscalização eficaz e permanente, com a qual seja possível auditar a qualidade do serviço e a correta aplicação dos recursos.
O anúncio da iniciativa de unir rede privada e pública de saúde na missão de cuidar da saúde da população é só o início de uma jornada, que deve passar pela construção de um sistema onde a complementaridade privada funcione de forma justa, transparente e eficiente, servindo ao cidadão, e não aos interesses de mercado.
*Natália Soriani é advogada especialista em Direito Médico e de Saúde, sócia do escritório Natália Soriani Advocacia Notícia distribuída pela saladanoticia.com.br. A Plataforma e Veículo não são responsáveis pelo conteúdo publicado, estes são assumidos pelo Autor(a):
CAIO FERREIRA PRATES
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