Descansar nunca foi tão cansativo: Bobbie Goods, cura ou sintoma?

Sheron Mendes*

JULIA ESTEVAM
08/07/2025 12h10 - Atualizado há 13 horas

Descansar nunca foi tão cansativo: Bobbie Goods, cura ou sintoma?
Banco Uninter

Vivemos sob o império da exaustão. A mente moderna está sobrecarregada, não apenas de tarefas, mas de estímulos, expectativas e pressões para um desempenho emocional constante. É preciso estar bem, parecer bem, e exibir isso em tempo real. Nesse cenário, não surpreende a explosão de fenômenos como os livros de colorir da Bobbie Goods, vendidos como ferramentas para aliviar a ansiedade, a depressão e o vício em telas. Mas por trás das cores suaves e da promessa de bem-estar, esconde-se um paradoxo incômodo: será que estamos realmente descansando ou apenas sendo alvo do algoritmo?

O cérebro humano não foi projetado para processar estímulos contínuos sem pausas. A teoria da sobrecarga cognitiva, desenvolvida por John Sweller, já apontava que o excesso de informações simultâneas compromete a memória de trabalho e afeta a tomada de decisões. Soma-se a isso o diagnóstico de Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço: não vivemos mais sob regimes autoritários externos, mas sob um regime de autoexploração, em que o sujeito esgota a si mesmo ao tentar ser sempre produtivo, positivo e engajado. E quando o corpo e a mente colapsam, somos imediatamente seduzidos por soluções embaladas como “autocuidado”.

É nesse ponto que entra o mercado da distração emocional. Produtos como os Bobbie Goods não são, em si, o problema. O que exige análise crítica é a lógica que os sustenta: a estetização do descanso, a padronização da pausa e a performance do relaxamento. Colorir tornou-se um conteúdo. Meditar virou meta. Dormir precisa ser monitorado por aplicativos. E tudo isso é promovido por algoritmos que se alimentam do nosso cansaço para vender uma ideia de alívio que, na prática, apenas perpetua a roda.

Como alerta Mario Vargas Llosa, em A Civilização do Espetáculo, vivemos em uma cultura que transformou o pensamento em entretenimento e a crítica em distração. A profundidade deu lugar à superficialidade, e até o sofrimento precisa ser apresentado de forma “consumível” para ser validado. A febre dos livros de colorir, com toda sua aparência terapêutica, se insere nesse modelo: é mais um episódio do espetáculo da saúde mental, no qual o foco é sentir-se melhor sem questionar por que nos sentimos tão mal.

Assim, trocamos o ruído do feed por playlists de sons calmos, mas continuamos conectados. Trocamos a ansiedade das redes pela disciplina de “fazer algo produtivo com o tempo livre”, como pintar corretamente, compartilhar o resultado, seguir perfis da moda.

Mas o verdadeiro descanso não exige validação. Descansar é não se render. É resistir à lógica da exposição, do desempenho e da comparação silenciosa que nos adoece.

O problema não está na prática de colorir, meditar ou caminhar. Está na colonização da pausa por uma indústria que transforma necessidades humanas em tendências. O “autocuidado” vendido nas redes muitas vezes é apenas um autoengano confortável, uma pausa patrocinada que só existe se for publicável, clicável e rentável.

Mais do que buscar alívio, precisamos recuperar o silêncio. Precisamos de espaços que não sejam palco, de tempo que não seja medido, de atenção que não esteja à venda. Precisamos de descanso que desloque, que reconecte com o essencial, e não com o algoritmo modal. Que nos lembre que há vida para além da tela, e que talvez seja aí que ela, de fato, começa.

*Sheron Mendes é Bióloga, especialista em Neurociência do Comportamento e professora dos cursos de pós-graduação em Educação no Centro Universitário Internacional Uninter


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