Carla Felgueiras*
O debate sobre o dano existencial no ambiente de trabalho ganha cada vez mais espaço no Brasil, sobretudo em razão de decisões recentes da Justiça do Trabalho. A questão central é simples e, ao mesmo tempo, profunda: até que ponto o trabalho pode invadir a vida pessoal sem configurar uma violação à dignidade humana?
Um exemplo recente foi o julgamento da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que rejeitou recurso da JBS S.A. e manteve a condenação de R$ 12 mil a título de indenização para um caminhoneiro submetido a jornadas que chegavam a 21 horas diárias. O colegiado entendeu que a jornada extenuante, por si só, foi suficiente para caracterizar o dano existencial, dispensando a prova de prejuízos concretos fora do ambiente laboral.
No caso, o motorista, de Lins (SP), relatou que trabalhava das 6h às 22h, com apenas duas folgas mensais, o que inviabilizava qualquer forma de convivência familiar, prática de esportes, vida social ou até mesmo o simples direito de ir à igreja. No seu caso, o excesso de jornada não apenas comprometeu sua saúde e bem-estar, mas também colocou em risco a segurança nas estradas, atingindo a coletividade. A empresa, por sua vez, argumentava que não havia prova do nexo entre a jornada e o alegado prejuízo à vida pessoal, sustentando que apenas o excesso de trabalho não configuraria, por si só, o dano existencial. Essa visão, no entanto, foi afastada pelo TST.
É importante lembrar que a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do TST já fixou tese exigindo a comprovação de prejuízo efetivo além da jornada extenuante. Contudo, o relator do caso, ministro Alberto Balazeiro, destacou a peculiaridade (distinguishing): a intensidade da jornada, que ultrapassava 16 horas diárias, inclusive em domingos e feriados, tornava impossível não reconhecer a prática ilícita.
Essa diferenciação revela o amadurecimento da jurisprudência trabalhista. Não se trata de banalizar o instituto do dano existencial, mas de reconhecer que certas condutas empresariais, pelo seu caráter abusivo, dispensam provas adicionais.
O voto do relator traz uma observação que merece ser destacada: jornadas extenuantes não afetam apenas a dignidade do trabalhador, mas também ampliam o risco de acidentes de trabalho e, em setores como o transporte rodoviário, comprometem a segurança de toda a sociedade. A discussão, portanto, ultrapassa o limite individual e alcança a esfera coletiva.
O dano existencial não é um conceito novo. Nasceu na doutrina italiana no século XX e ganhou espaço no Brasil a partir dos anos 2000, sendo reconhecido expressamente pela reforma trabalhista de 2017, nos artigos 223-B e 223-C da CLT. Trata-se de uma categoria que protege dimensões fundamentais da vida humana: intimidade, autoestima, lazer, convivência social e familiar.
Decisões como a da Terceira Turma do TST reforçam um recado claro: não basta garantir o emprego se o preço é a negação da vida fora do trabalho. O direito ao descanso, ao lazer e à convivência social não são privilégios, mas condições mínimas de uma existência digna.
Num país em que parte expressiva da força de trabalho ainda enfrenta jornadas abusivas, é urgente que o Judiciário continue a firmar limites. O caso do caminhoneiro contra a JBS simboliza um passo importante nessa direção, reafirmando que a dignidade humana não pode ser atropelada pela lógica da produtividade a qualquer custo.
*Carla Felgueiras é advogada especialista em Direito do Trabalho e sócia do escritório Montenegro Castelo Advogados Associados
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MURILO DO CARMO JANELLI
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