Maria Emilia Genovesi
Desde a pandemia, o Brasil assiste a um crescimento impressionante no consumo de medicamentos controlados. Mais do que um reflexo de diagnósticos em alta, esse movimento revela um colapso emocional em larga escala — silencioso, cotidiano, e socialmente aceito. Neste artigo, reunimos dados recentes e vozes de especialistas para entender o que realmente está adoecendo o país.
No final de 2020, enquanto o mundo ainda tentava se reorganizar em meio ao caos provocado pela COVID-19, farmácias brasileiras registraram algo que poucos esperavam: uma explosão na procura por medicamentos tarja preta. Clonazepam, zolpidem, alprazolam. Substâncias que, até então, tinham um uso controlado e restrito, passaram a fazer parte da rotina de milhões de brasileiros que não conseguiam mais dormir, trabalhar ou se concentrar. Desde então, a curva não parou de subir.
Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da consultoria IQVIA mostram que, entre 2019 e 2022, o consumo desses psicotrópicos cresceu mais de 30%. O caso do clonazepam é emblemático: 14 milhões de caixas vendidas em 2019 saltaram para 21,6 milhões em 2022 — um aumento de 54%. O zolpidem, utilizado como indutor do sono, mais do que dobrou suas vendas, registrando um crescimento de 105% no mesmo período. A pandemia pode ter sido o estopim, mas não é a única explicação.
A psicóloga clínica Ana Lúcia Dantas, que atende em São Paulo, explica que o sofrimento psíquico sempre existiu, mas ganhou contornos mais visíveis — e urgentes — no pós-pandemia. “Muitas pessoas passaram a procurar ajuda não por estarem doentes, mas por não suportarem mais o tipo de vida que levavam. O remédio veio como uma tentativa de aguentar o dia seguinte”, diz. A fala ecoa na experiência de consultórios Brasil afora: ansiedade, insônia, ataques de pânico e esgotamento emocional se tornaram queixas corriqueiras.
O psiquiatra Leandro Telles observa que o aumento nas prescrições não significa, necessariamente, mais tratamento: “Estamos lidando com um modelo de saúde mental que oferece o remédio como solução rápida. Ele reduz o sintoma, mas não dá conta da origem.” Para Telles, o problema é que a sociedade passou a considerar normal estar exausto — e quando isso se torna insuportável, o recurso mais imediato é farmacológico.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em relatório de 2022, já previa que transtornos mentais seriam a “próxima pandemia”. No primeiro ano da COVID-19, a prevalência de ansiedade e depressão no mundo aumentou em 25%. No Brasil, país que já liderava os índices globais de transtornos de ansiedade, os efeitos foram ainda mais profundos. Embora faltem dados oficiais pós-2023, pesquisadores estimam que mais de 12% da população hoje conviva com algum tipo de transtorno psíquico.
A explosão de consumo entre os jovens adultos chamou a atenção da comunidade científica. A faixa etária de 18 a 35 anos registrou o crescimento mais agressivo no uso de medicamentos controlados. “Estamos falando de uma geração inteira que nunca teve tempo para elaborar suas emoções. É uma juventude que aprendeu a performar o tempo todo — e quando o corpo ou a mente travam, o sistema exige que continuem funcionando”, comenta o neurocientista Paulo Esteves, da UFRJ. Para ele, o uso abusivo de psicofármacos nesse grupo representa uma tentativa desesperada de adaptação a um ritmo desumano.
Essa tentativa, no entanto, muitas vezes esbarra em um sistema público de saúde mental que não dá conta da demanda. O Brasil conta com cerca de 6 mil psiquiatras no SUS — número insuficiente diante da magnitude do problema. Como consequência, a prescrição de medicamentos torna-se o caminho mais rápido, mais barato e, infelizmente, mais solitário. “A medicalização acaba sendo uma resposta institucional à falta de políticas públicas de acolhimento e escuta”, afirma a professora Márcia Oliveira, da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela chama atenção para o risco de se tratar o sofrimento com lógica industrial: “Não se cura uma crise existencial com uma caixa de comprimidos.”
Essa crítica é reforçada por cientistas sociais que acompanham de perto o fenômeno. O antropólogo Renato Duarte, da PUC-RJ, analisa a popularização dos psicotrópicos como parte de um processo maior de controle social. “Estamos anestesiando a insatisfação coletiva com substâncias que permitem que as pessoas continuem operando no mercado. Há algo perverso nisso.” Segundo ele, a medicalização em massa não representa avanço no cuidado, mas sim o enfraquecimento das redes comunitárias, da solidariedade e da escuta social.
A psiquiatra Miriam Sachs, da Unifesp, lembra que os medicamentos controlados têm, sim, sua função terapêutica — e em muitos casos, são indispensáveis. Mas ressalta: “O problema começa quando eles deixam de ser ponte e passam a ser muleta. Quando a pessoa depende do remédio para simplesmente existir.” Sachs defende que o caminho mais sustentável inclui
psicoterapia, fortalecimento de vínculos, reestruturação da vida social e, sobretudo, tempo. “Tempo para elaborar, para sentir, para parar”, conclui.
Entre os comprimidos engolidos e os silêncios engolidos, o Brasil se aproxima de um ponto crítico. A anestesia coletiva pode até evitar o colapso imediato, mas a que custo? Cada caixa vendida carrega mais do que um número em estatística: carrega histórias de dor, de urgência, de cansaço e de ausência de cuidado real.
A receita continua sendo retida nas farmácias, mas o sofrimento já escapou de qualquer controle.
Thiago de Moraes* é jornalista MTB 0091632/SP, cientista político, jurista, jurista, professor, escritor, colunista Migalhas Jurídicas
Além disso, o professor Thiago de Moraes criou o podcast "A Pauta", onde ele traz debates e entrevistas relevantes sobre temas sociais, políticos, e entretenimento o podcast pode ser encontrado no youtube.
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MARIA EMILIA GENOVESI
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