A anulação do contrato de franquia 

MURILO DO CARMO JANELLI
29/04/2025 14h46 - Atualizado há 2 horas

A anulação do contrato de franquia 
Foto: Daniel Cerveira

Daniel Cerveira*

 

É inegável o crescimento do sistema de franquia no Brasil e no mundo, decorrente das vantagens do compartilhamento em rede e marcas fortes.

A antiga Lei de Franquias (Lei nº 8.955, de 15 de dezembro de 1994) vigorou por mais de duas décadas com notável sucesso, na medida em que permitiu a ampla liberdade contratual, como é imprescindível neste mercado, sem ser omissa no que tange à necessidade de os franqueados adentrarem nos sistemas somente após receberem informações essenciais sobre o negócio escolhido, tais como, o investimento inicial, número de unidades existentes, entre outras. Também não se observou grandes controvérsias em torno do texto legal. O crescimento do franchising no Brasil demonstra esta dinâmica.

A nova Lei de Franquias (Lei nº 13.966, de 26 de dezembro de 2019), que entrou em vigor em 2020, define franquia empresarial da seguinte forma:

Art. 1º  Esta Lei disciplina o sistema de franquia empresarial, pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento”. (BRASIL, 2019, art. 1º).

A legislação vigente manteve a estrutura da anterior, especialmente no que se refere à obrigação da apresentação da circular de oferta de franquia aos candidatos com 10 dias de antecedência da “assinatura do contrato ou pré-contrato de franquia ou, ainda, do pagamento de qualquer tipo de taxa pelo franqueado ao franqueador ou a empresa ou a pessoa ligada a este, salvo no caso de licitação ou pré-qualificação promovida por órgão ou entidade pública...”, com a vantagem de aliviar algumas discussões existentes, além de elevar a gama de dados a serem incluídos na circular de oferta.

A circular de oferta de franquia tem como função transmitir todas as informações necessárias ao candidato e assim possibilitar que o negócio seja concretizado com a devida ciência das regras e condições. O artigo 2º, por sua vez, elenca quais informações devem obrigatoriamente constar da circular de oferta de franquia, tais como o histórico resumido do negócio, balanços e demonstrações financeiras da empresa franqueadora dos últimos 2 anos exercícios, perfil do franqueado ideal, total estimado do investimento inicial, a remuneração periódica pelo uso do sistema (royalties), taxa de publicidade, supervisão da rede, entre outros, além de ser necessária a inclusão na circular dos modelos do contrato-padrão e do pré-contrato de franquia.

Cumpre esclarecer, ainda, que a Lei de Franquias determina que sempre o contrato de franquia deverá ser escrito e assinado na presença de 2 testemunhas, bem como terá validade independentemente do registro perante cartório ou órgão público.

No mais, a referida Lei deixa as partes livres para contratar, devendo ser observados somente os princípios da boa-fé, equilíbrio econômico e da função social do contrato, nos termos da legislação ordinária nacional.

Por seu turno, o § 2º, do art. 2º determina que, no caso da inobservância ao estabelecido no § 1º do mesmo artigo, “o franqueado poderá arguir anulabilidade ou nulidade, conforme o caso, e exigir a devolução de todas e quaisquer quantias já pagas ao franqueador, ou a terceiros por este indicados, a título de filiação ou de royalties, corrigidas monetariamente”.

A interpretação do § 2º acima não é tarefa fácil, senão vejamos:

Como é sabido, a hermenêutica jurídica é assunto extremamente complexo e composta por quatro métodos principais, quais sejam: literal, sistemático, histórico e teleológico.

O método literal, apesar de necessário, não pode ser o único a ser utilizado. O legislador, com certa regularidade, não consegue antever todas as circunstâncias da vida real, sendo comuns as chamadas lacunas legais. Ao aplicador do direito, por sua vez, é necessário considerar que o mundo jurídico não é estático. Embora não seja recomendável uma elasticidade demasiada na interpretação das leis, sob pena de comprometer a segurança jurídica e afrontar as escolhas políticas dos cidadãos, a literalidade, por si só, não leva à Justiça.

Quanto ao § 2º acima aludido, existe um ponto a ser criticado no sentido de que o erro (não encaminhamento ou encaminhamento com dados faltantes ou incorretos) no envio da Circular de Oferta de Franquia (COF) jamais gerará a nulidade (entenda-se a nulidade absoluta) do contrato de franquia. A nulidade poderá ocorrer, mas por outros motivos como no caso de o contrato ter sido firmado por pessoa absolutamente incapaz.

A falha na COF remete somente a anulabilidade do pacto, uma vez ser plenamente possível a sua convalidação. Aliás, desde já, vale trazer o Enunciado IV do Grupo Reservado de Direito Empresarial do TJ/SP:

A inobservância da formalidade prevista no § 1º, do art. 2°, da Lei n° 13.966/2019, pode acarretar a anulação do contrato de franquia, desde que tenha sido requerida em prazo razoável e que haja comprovação do efetivo prejuízo, ou a declaração de nulidade. (TJ/SP, Redação revisada na sessão de 09.11.2021, Enunciado IV).

Outra questão polêmica que merece destaque é se o contrato de franquia não escrito é nulo per se, à luz do art. 166, inciso IV, do Código Civil, e do art. 7º, inciso I, da Lei de Franquias. O primeiro estabelece que são cobertos de nulidade os negócios jurídicos que não atenderem a forma determinada legalmente. O segundo dispõe que os contratos de franquia devem ser escritos.

A dinâmica empresarial e, por vezes, condutas inapropriadas de seus agentes impedem a observância completa das regras de governança contratual. Ou seja, em muitas oportunidades, na ânsia de fechar negócios rapidamente, os empresários acabam pulando etapas. Ademais, também existem as hipóteses nas quais a pessoa aproveita a “urgência” da outra parte para obter vantagens, como deixar de assinar os instrumentos competentes.

Sobre o tema existem correntes jurisprudências diversas. Por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) já julgou demanda (Recurso de Apelação nº 1025834-14.2019.8.26.0554, j. 08.11.2022) na qual declarou nulo o contrato verbal celebrado, com fulcro no art. 166, IV, do Código Civil, uma vez que o pacto não seguiu a forma prescrita em lei (no caso não foi enviada a Circular de Oferta de Franquia e não foi assinado qualquer tipo de contrato), determinando a devolução dos valores pagos a título de taxa de franquia e royalties. Destaca-se que o Tribunal declarou a nulidade per se, sem sequer analisar se as atividades desempenhadas pelas partes poderiam indicar a convalidação do negócio jurídico.

De outro lado, conforme Recurso de Apelação nº 1040195-49.2020.8.26.0506, julgado em 26.04.2022, o mesmo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) declarou válido um contrato de franquia verbal, sob o fundamento de que, pelos fatos ocorridos, restou configurada a aceitação tácita do franqueado. Ressalta-se que, nesta demanda, foi entendido que não houve falha no envio da Circular de Oferta de Franquia e que as partes tinham firmado um pré-contrato. Ademais, o Tribunal embasou a sua decisão pelo fato do negócio do franqueado ter funcionado por mais de 4 anos, bem como por restarem comprovadas pela franqueadora a transferência de know-how e a prestação do devido suporte técnico operacional.

A linha adotada pela segunda decisão relatada acima é a correta, tendo em vista que não cabe somente à franqueadora o ônus de buscar a completa formalização dos contratos de franquia. Imagine uma hipótese em que uma franqueadora, ainda incipiente em suas atividades, acaba por não colher as assinaturas do franqueado, por inexperiência, deficiência estrutural ou má-fé deste último. Ora, as partes não podem ser beneficiadas pela própria torpeza. Além do mais, acima do artigo 166, inciso IV, do Código Civil, estão os artigos 422 e 884, ambos classificados como principiológicos.

Ora como aceitar, por exemplo, a hipótese de um franqueado que operou uma unidade lucrativa por 10 anos mediante um contrato verbal e resolve obter a declaração de nulidade para receber todos os royalties pagos de volta. É razoável essa situação? Ou configura um cenário de comportamento contraditório e enriquecimento ilícito?

No que concerne à proibição do comportamento proibitório (venire contra factum proprium), vale destacar que é o tipo de abuso de direito que aparece do desrespeito ao princípio da confiança, consequência do regime da boa-fé objetiva.

A melhor linha de raciocínio é que os contratos de franquia verbais são anuláveis, jamais nulos absolutamente, sob o fulcro nos arts. 138, 139, inciso I, e 171, inciso II, todos do Código Civil.

Ou seja, a depender da situação concreta, o “franqueado” poderá defender que o contrato verbal carece de “qualidades essenciais” do negócio jurídico, na medida em que não obteve ciência das regras fundamentais da sua relação com a franqueadora e com as atividades a serem desempenhadas. Por outro lado, por exemplo, se o “franqueado” recebeu a Circular de Oferta de Franquia, acompanhado da minuta do contrato de franquia, que não foi assinado posteriormente, fica mais difícil alegar o vício de consentimento.

O conhecimento do franqueado sobre o assunto, o período de funcionamento do negócio e outros fatores relevantes, devem ser considerados na apreciação da nulidade relativa (anulabilidade) ou não dos contratos de franquia verbais.

Cumpre esclarecer que a assinatura do contrato de franquia também interessa ao franqueado, na medida em que lhe garantirá a exploração da marca pelo prazo combinado e, assim, o retorno do seu investimento.

Outra questão possível a partir da interpretação literal do § 2º do art.  2º da Lei de Franquias é se, na hipótese de o contrato ser declarado nulo (absoluta ou relativamente), caberia somente ao franqueado pleitear o ressarcimento das quantias pagas ao franqueador, ou a terceiros por este indicado, a título de filiação ou de royalties, corrigidas monetariamente. Neste cenário, seria possível ao franqueado também requerer indenização complementar? O entendimento correto é afirmativo, visto que o rol estabelecido na Lei de Franquias é exemplificativo e não taxativo, considerando que o texto legal não afasta expressamente o direito à reparação por perdas e danos. Tal interpretação encontra fundamento no ordenamento pátrio em vigor e nos ditames constitucionais.

*Daniel Cerveira, sócio do escritório Cerveira, Bloch, Goettems, Hansen & Longo Advogados Associados. Autor dos livros "Shopping Centers - Limites na liberdade de contratar", São Paulo, 2011, Editora Saraiva, e “Franchising”, São Paulo, 2021, Editora Thomson Reuters Revista dos Tribunais, prefácio do Ministro Luiz Fux, na qualidade de colaborador. Consultor Jurídico do Sindilojas-SP. Colunista do site “Central do Varejo” e do Portal “Sua Franquia”. Coordenador da Comissão de Expansão e Pontos Comerciais da ABF - Associação Brasileira de Franchising. Pós-Graduado em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV/SP) e em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atuou como Professor de Pós-Graduação em Direito Imobiliário do Instituto de Direito da PUC/RJ, MBA em Gestão em Franquias e Negócios do Varejo da FIA – Fundação de Instituto de Administração e Pós-Graduação em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


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