As Máscaras do Trágico

Como Todos os Atos Humanos, da Companhia do Sopro, traz prodigiosa interpretação de Fani Feldman

LUIZ EDUARDO DE CARVALHO
25/03/2025 18h17 - Atualizado há 3 semanas

As Máscaras do Trágico
divulgação
 

Não há talentos natos, os grandes talham-se com tempo, dedicação, entregas íntimas e em dinâmicas coletivas. Há grandes mestres no trajeto de cada um. Há grandes encontros no percurso. Há instâncias progressivamente conquistadas como marcos do infinito aprendizado. Há espelhamentos de reconhecimentos e estranhamentos em cada tablado e camarim frequentado! Há uma instância de acréscimo na borda de cada degrau calcado. Há um ganho em cada composição comungada com o todo das representações, linguagens, temas, técnicas... Lenta e persistente construção, a dos grandes talentos. Cabe a quem testemunha algumas trajetórias artísticas, compor juízo acerca de seus processos. E eu acompanho Fani Feldman por tempo suficiente para atestar o quanto ela já despontou e hoje consolida-se como um dos grandes talentos dos palcos brasileiros. 

Fani faz parte da paulistana Companhia do Sopro, que reúne essa natureza de artistas já  notabilizados pelos resultados de seu Laboratório Dramático do Ator, sob a orientação do mestre Janô, Antônio Januzelli, que trabalha anos a fio, literalmente, com seus orientados na busca dos elementos para a construção de cada espetáculo. No caso de Como Todos os Atos Humanos, a teatróloga Fani Feldman foi a matéria prima dessa alquimia teatral que durou três anos antes de ser mostrada ao público para exercer sobre ele o fascínio de sua cuidadosa elaboração.

Fani interpreta um monólogo de sua autoria, inspirado em trechos de Marina Colasanti, Nelson Coelho e Giorgio Manganelli e costurados por um potente fio narrativo que os transpõe da Literatura para o palco, tornando-os um vigoroso enxerto dramatúrgico que aborda, com profundidade simbólica, as reações do universo feminino ao jugo do patriarcado e extrapola as consequências das complexidades da violência contra as mulheres com a prática do parrícidio, num ato justificado por um discurso que, posto no limiar da máxima lucidez, inrompe como loucura na proporção da ação reativa desencadeada e dos ecos de insanidade soprados como memória do acontecido apresentado com a naturalidade de todos os atos humanos.

A interpretação solo de Fani Feldman é sublime e traduz, em cinquenta densos minutos de atuação, as especialidades do mestre Janô muito bem materializadas pela sua competência de atriz que, entre outros papeis marcantes, encarnou uma Medeia como poucas que eu vi nos palcos nacionais. A máscara trágica desenha-se na face da personagem como se ela fosse feita de uma massa de modelar suscetível às ações da opressão de que se liberta, não sem envolver a plateia no necessário jogo de reconhecimentos e estranhamentos de que a tragédia é pródiga. O trabalho corporal é ostensivo e necessário à cena e à dramaturgia. Tudo se soma em significados. A máscara na face aterrorizada da personagem e os econômicos elementos cênicos, que incorporam uma iluminação cirúrgica, trazem citações a Magritte e Munch, entre outros, não à guisa de referências estéticas, mas com o aprofundamento dos sentidos de sua densa narrativa.

Todos os elementos concorrem, assim, para a construção da dramaturgia que, mesmo quando suprimida da palavra, envolve pelos gestos e pelas expressões muito bem marcados e pontuados que a atriz em cena consegue transfigurar da ação quase à inação de quadros pictóricos ou, quando muito, da linguagem de mínimos esquetes mímicos repetidos em looping. Ela abre o monólogo muda, andando em espiral ao redor do cenário, ao qual acabará se fundindo, revelando-o um adereço de sua única e significativa indumentária; depois, tem acessos de riso, seguidos da mímica das máscaras moldadas em sua própria face, numa sequência de inquietantes comportamentos que preparam, no silêncio, o espaço para as palavras que ocuparão o centro da tensa narrativa. Um primor de construção sob a direção do talentosíssimo Rui Ricardo Dias, outro expoente da Companhia do Sopro. 

Como Todos os Atos Humanos é título irônico, senão pela peculiaridade como se apresenta o conteúdo abordado, com certeza pela montagem que nomeia. Poucos são atos humanos assim assombrosos, ainda que narrados como naturais pela loucura/sanidade da personagem. Menos ainda são os atos teatrais tão potentes e impactantes. O espetáculo é uma arapuca em que caímos dentro da caixa preta que nos envolve, sem deixar fresta para escaparmos das emoções purgadas na catarse que se assiste no palco. Afinal, é a isso que se destinam as tragédias, independente das máscaras que apresentem!


 

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